Raul Lody, museólogo e antropólogo: “Há um processo de demonização da cultura brasileira”

Pesquisador, ele veio ao Rio como curador da exposição “Festa brasileira”, no Centro Sebrae de Referência do Artesanato Brasileiro

” O aniversário, o batizado, o casamento e o velório, que é uma espécie de festa também. Cada uma dessas celebrações é muito autoral, muito pessoal e muito própria. A festa é um momento de rompimento, e esses temas são rupturas. Nascer é irromper, fazer aniversário é romper o tempo, casar é uma ruptura social, e morrer é uma ruptura com a realidade”, diz antropólogo – Ana Branco / Agência O Globo

por Lucas Abreu

“Moro no Recife, mas sou carioca da gema. Sou museólogo e antropólogo de formação. Basicamente, meu trabalho é um estudo sobre a confecção de peças de artesanato e a realização de festas populares pelo Brasil. Atualmente, também me dedico a pesquisar a culinária do nosso país.”

Conte algo que não sei.

Há um movimento de repressão emergindo e isso afeta a expressão coletiva, de pertencer a uma história ou tradição. É um movimento que é quase uma nova inquisição, onde as questões não são apenas religiosas, mas éticas, morais ou de gênero. Existe uma frente repressora muito forte, que vai causando o desaparecimento de festas e expressões populares. Muitas pessoas já não dançam, não cantam, não fazem seus objetos, não louvam seus mitos, não comem mais suas comidas. Porque, de repente, tudo virou. É um processo de demonização perverso da cultura brasileira.

Mas, hoje em dia, não temos mais à história dessas tradições populares, apesar da repressão que o senhor diz existir?

Sim, as mídias digitais possibilitaram a democratização desses conhecimentos. É fantástico, por exemplo, ver coisas que, antes da internet, dificilmente você saberia existir. As mídias digitais deram projeção a muitos movimentos. E, ao mesmo tempo que há esse processo de destruição cultural, há um movimento de luta e defesa.

O senhor acha que esse processo de destruição pode estar relacionado, ou até mesmo ser uma resposta, a um processo de autoafirmação?

Sim. Existe uma luta pelo poder, pelo controle desse patrimônio. O Estado também é um lugar de disputa, não é o inimigo. Estamos deixando de ser um país laico. Mas também podemos preservar nossas tradições populares com políticas de Estado.

As festas e tradições populares estão desaparecendo?

Muitas delas estão deixando de acontecer. Muitas pessoas não brincam mais no Bumba-meu-boi do Maranhão, por exemplo. Muitas pessoas não saem mais com seus grupos e cortejos porque optaram por outras tradições religiosas e culturais. Você não pode beber, não pode cantar, não pode usar máscara. A pessoa opta por esse tipo de tradição, o que é uma perda muito grande das nossas histórias.

Como essas festas conviviam com a tradição católica antes?

Não foi suave, mas houve apropriação, porque a maioria dessas festas tem um viés religioso católico, embora não exclusivamente. O Bumba-meu-boi do Maranhão, ao mesmo tempo que tem um personagem africano, o Cazumbá, é uma louvação a São João Batista, por exemplo. Temos uma intimidade com o sagrado que é muito própria do Brasil.

E essa intimidade subverte o sagrado tradicional?

Às vezes, sim. É um processo de apropriação em que a pessoa traz o sagrado pra casa, para a sua intimidade. O São João dela pode não ter nada a ver com o oficial, mas é dela. É um sagrado muito mais humanizado, muito mais próximo. E as matrizes africanas permitem mitologias e deuses extremamente humanos.

Quais são as festas do Brasil que ninguém pode perder?

As festas familiares. O aniversário, o batizado, o casamento e o velório, que é uma espécie de festa também. Cada uma dessas celebrações é muito autoral, muito pessoal e muito própria. A festa é um momento de rompimento, e esses temas são rupturas. Nascer é irromper, fazer aniversário é romper o tempo, casar é uma ruptura social, e morrer é uma ruptura com a realidade. O ciclo é marcado, seja pelo bolo, pelo presente, pelo canto ou por uma missa.

 

 

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