A água, o sagrado e o rei de Ketu

Água é um elemento revitalizador, purificador, boa para beber; e ainda uma das melhores maneiras do bem receber.

Oferecer água para quem chega, um visitante, amigo ou estranho transmite simbolicamente os votos de vida e de fertilidade, e é um ato imemorial de paz

A água é também um elemento de comunicação que prepara o corpo e o espírito para que haja um diálogo entre o homem, o seu deus, e o seu antepassado. A água é ainda o primeiro contato com a natureza segundo as mitologias que falam sobre a gênese do mundo e do homem.

Nas tradições Ioruba, oferecer água ao visitante é uma obrigação que deve ser cumprida na chegada; assim como o católico, ao entrar numa igreja, busca a pia de água benta; e o muçulmano busca água para suas abluções antes de entrar no chão sagrado da Mesquita.

No candomblé baiano, é comum o visitante encontrar próximo a porta de entrada um recipiente contendo água; e, com uso de uma quartinha de barro, caneca ou outro tipo de utensílio, ele deve jogar um pouco d’água no solo para que desse modo seja permitida sua chegada, segundo o protocolo de respeito aos costumes afrodescendentes.

Também, nos candomblés, é oferecido um copo d’água para beber, para tranquilizar o corpo de quem chega da rua, chega com o corpo quente, e necessita ser acalmado, preparado para viver esse novo ambiente, o terreiro. O contato da água com o corpo forma um elo fundamental para o princípio da vida.

 

Foto Jorge Sabino

 

Trago na memória a minha visita ao rei de Ketu, em Ketu no Benin, África Ocidental, num momento em que o então candidato ao cargo cumpria os seus muitos rituais de iniciação para ocupar suas funções dentro do poder social e religioso.

Quando fui visitar o rei tive uma grande emoção, pois o então candidato teria que cumprir visitas e permanências nos cinco palácios, sendo o último palácio o local da coroação, em Ifé, Nigéria. O Onin – rei – seria então sagrado o novo rei de Ketu.

Avistei o futuro rei no palácio que estava preparado para coroação. Fui recebido por um de seus ministros, pois ninguém deve se dirigir diretamente ao rei, e ele transmite suas mensagens ao ministro escolhido, e este transmite as mensagens do rei ao visitante. Antes de chegar ao palácio, o rei já havia feito as visitas aos demais palácios e ao mercado real de Ketu.

Antes de entrar no palácio, o ministro trouxe para mim uma meia cabaça, uma cuia com água que deveria ser bebida, e também colocada no chão. Senti-me em um candomblé da Bahia.

Na sala do rei, o seu trono sobre um palanquim, e nas esteiras estavam sentados os seus ministros. Na porta ficavam as mulheres e as crianças. Saudei o rei como se faz com a Ialorixá ou com o Babalorixá, realizei o iká, prostrei-me no chão e em seguida cumprimentei-o; e, assim, iniciei um diálogo repleto de cerimônia, e pedi autorização para entoar um canto que é importante nos candomblés Ketu da Bahia, que fala sobre a lembrança do céu de Ketu. E comecei: “Ara Keture (…)”.

Nessa terra chegam-me as memórias das relações de força e sentimento com os muitos costumes e princípios religiosos dos candomblés Ketu da Bahia, da “Nação Ketu”, especialmente no Salvador, nos terreiros da Casa Branca, do Gantois e do Ilê Axé Opô Afonjá, com amplíssima descendência em centenas de outros candomblés. Todos ungidos pelo orgulho ancestral de manter as memórias das terras de Edé, orixá fundador, popularmente trazido no imaginário afrodescendente como ‘odé’, o caçador e, em especial, Oxóssi, conhecido em todos os terreiros como o rei do Ketu.

Água, sempre a água, que traz memórias, histórias, licenças para entrar em contato com níveis sociais e sagrados.

 

Raul Lody

Recife, 27 de maio de 2017

 

 

 

 

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