A comida está na rua, Sabejé!

Sem dúvida, a comida acompanha o homem no seu cotidiano e nas suas celebrações.  A comida marca identidade, determina a produção de ingredientes; possibilita a comensalidade, a comunicação ritual e religiosa com os deuses; e, com isso, integra de maneira profunda todas as relações sociais. Sempre um ingrediente ou um preparo culinário especifico traz referências que estabelece comunicação com diferentes segmentos sociais, e com o que é sagrado.

 

Foto Jorge Sabino

 

Assim, um santo da Igreja, divindades ou mitos como, por exemplo, as sereias, os orixás, cada um tem na comida uma expressão peculiar de identidade que se relaciona também as cores, texturas, odores, formas, paladares, estéticas; entre muitos outros elementos visuais que trazem significados que vão além do que a boca pode compreender em sabor; pois a comida não é só para alimentar o corpo, e a boca é a entrada para um universo muito maior para a compreensão de conceitos.

As matrizes africanas e afrodescendentes valorizam o ato de comer como uma forma de comunicação, e por isso se tem o hábito de “dar de comer” aos atabaques, às árvores sagradas, há um entendimento de que a alimentação é ampla e profundamente simbólica.  As manifestações públicas onde são oferecidas comidas trazem expressões e linguagens que caracterizam cada comida, e como cada comida deve ser oferecida e consumida. Nestas ritualidades da comida também dialogam com o corpo, o espaço, o objeto. Os gestos, entre muitas maneiras de mostrar e de marcar o momento da alimentação marca o sentido da festa e do sagrado.

Na Bahia e, em especial, na cidade do São Salvador, em agosto, há uma importante manifestação que tem na pipoca, que é chamada de “doboru”, o olhar e a matriz africana que traz um preparo sagrado para comemorar um dos orixás mais populares da Bahia que é Omolu, Obaluiaiê para as tradições Ioruba/ Nagô. Neste mês o doboru se amplia no cotidiano dos tabuleiros, nas vendas das comidas de dendê, no ofício das mulheres que trazem a religiosidade dos candomblés para as ruas.

Assim, a comida está na rua com o ritual chamado de Sabejé, um ritual público e tradicional do candomblé que celebra Omolu, orixá que é sincretizado tanto com São Roque quanto São Lázaro. E agosto também é o mês em que se comemora estes santos no calendário da igreja católica. Todas as Nações, Ketu, Angola, Congo, Jeje, estão nas comemorações, e um conjunto de festas que preservam as tradições de matriz africana na Bahia.

Este ritual público, o Sabejé, pode ser interpretado como um sentido de ganho, atividade de venda de comida, que é enfatizada pela silaba “jé”, que representa o verbo comer na língua Ioruba. O Sabejé é um ritual que representa por tradição a visita de Omolu à cidade, e o contato que ele estabelece com as pessoas, e isto se dá especialmente com o uso das pipocas, a comida ritual deste orixá.

Nas ruas, há geralmente três pessoas que formam um grupo para realizar o Sabejé, um leva o tabuleiro com o assentamento do orixá Omolu, outro o balaio do doboru, pipocas, e o terceiro estabelece o contato com o público. São muitos os trios de adeptos do candomblé que realizam o Sabejé, o ritual de oferecimento do doboru. Já as pessoas que recebem o doboru devem se manifestar pelo oferecimento de uma quantia livre; e, em seguida, o doboru é comido ou passado pelo corpo, num verdadeiro ritual de purificação, numa busca de contato sagrado com o orixá.

As pessoas que fazem essa obrigação religiosa nas ruas devem trajar roupas brancas, que mostram peças bordadas em richelieu, fios de contas, turbantes; também, os tecidos que montam o tabuleiro com os objetos sagrados do orixá no seu assentamento, trazem uma estética afro-baiana; é um momento patrimonial da cidade do Salvador, e de muitas outras cidades que também celebram o Sabejé nas ruas.  É um momento onde se traz para rua um patrimônio sagrado que marca a identidade da Bahia.

 

Raul  Lody

(originalmente publicado no Jornal A Tarde, agosto 2016, Bahia)

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