A louça caxixi: as miniaturas de barro da Bahia.

Sem dúvida, a comida é um amplo e complexo processo sensorial e simbólico que tem na imagem um dos seus mais notáveis meios de entendimento do que é paladar por meio de conceitos estéticos como cor, textura, forma e volume. Além disto, a imagem dos objetos que compõem o serviço à mesa e da comida indicam como ela deverá ser consumida, considerando-se os diferentes rituais de comensalidade de cada cultura.

Assim, os utensílios e os demais objetos que fazem parte dos muitos e diferentes momentos da alimentação possibilitam um diálogo entre a pessoa e a comida, uma conversa única e particular.

Por tudo isso, cada louça, cada utensílio, tem uma fala visual, funcional e emocional à mesa; ou, na banca de feira ou de mercado; no tabuleiro de comida ambulante; porque cada comida, com os seus múltiplos objetos usados para servi-la, é uma fala de múltiplos sentidos que revela diferentes momentos sociais.

 

Foto Jorge Sabino

Para mostrar estes aspectos tão importante trago, como exemplo, um estudo de caso a partir de uma louça da Bahia, do Recôncavo; um tipo de produção em cerâmica conhecido como “caxixi”.

Caxixi é a designação regional que se dá às miniaturas feitas de barro a partir de muitos tipos de utilitários da região de Nazaré das Farinhas, em Maragogipinho, no Recôncavo da Bahia.

Esses objetos em miniatura são ainda conhecidos como louça-caxixi e miuçalha; e muitos também são usados como brinquedos pelas crianças. Este tipo de produção do artesanato do Recôncavo, segundo a tradição oral, servia como embalagem para a cachaça caxixi, uma cachaça de baixa qualidade, e que tecnicamente é considerada um “óleo de fúsel”.

O uso da louça miniatura como embalagem para a bebida é marcada por ocasião da Semana Santa com uma feira regional conhecida como a feira do caxixi.

No contexto perverso da escravidão no Brasil, o feriado da Semana Santa e, em especial, o sábado de Aleluia em algumas localidades, era um período especial para os africanos em condição escrava. E, neste calendário, era permitido um tipo de comércio ambulante com a venda de alguns produtos, uma atividade econômica conhecida como os “ganhos”.

Os “ganhos”, por ocasião de Semana Santa, faziam ampliar as ofertas de produtos, e além das comidas, haviam muitos objetos artesanais produzidos pelos escravos e seus descendentes, o que mostravam as suas habilidades que iam desde fazer as rendas de bilro até a produção, em maior ocorrência, de peças feitas de barro. Assim, em virtude do período dos feriados da Igreja, este tipo de atividade do artesanato em barro fica conhecido como “louça de Deus”.

Geralmente as miniaturas de utilitários são produzidas a partir do barro já devidamente plástico e preparado para a modelagem.  Normalmente as miniaturas seguem os mesmos motivos das louças usadas nas casas: panelas alguidares, jarros, tigelas, moringas, entre tantos outros utensílios.

Provavelmente a estética da louça caxixi trazem temas de matriz africana e também da louça ibérica tradicional que está presente neste processo de memória e de criação popular.

Tudo remete a importância que os objetos têm na criação das comidas e das bebidas, pois cada utensílio tem um valor simbólico, funcional e estético; por isso, sem dúvida, deve-se apoiar um entendimento global dos sabores.

Em Nazaré das Farinhas vive-se uma das mais expressivas realizações da louça de barro, na sua maioria de uso nas cozinhas e nas mesas. Esta louça de barro tem uso diário nas casas de milhares de baianos que agregam às receitas das comidas feitas com dendê o uso complementar das peças de barro.

Isso mostra como é integrada a comida com o serviço, porque estes utensílios afirmam a identidades de cada prato, e possibilita um entendimento estético da comida.

A diversa produção de Nazaré das Farinhas mostra tipologias de peça que formam conjuntos de utilitários que se pode considerar como uma “família de objetos”, usados para guardar e oferecer água, que é formada por quartinha, quarta, quartinhão e porrão ou pote.

Nesta “família” de utensílios há um desenho base que dá unidade ao conjunto, e assim reconhecimento sobre a produção e sua procedência. São desenhos mediterrâneos, que chegam com as olarias de Portugal, com os modelos antigos e funcionais da cerâmica Ibérica.

Há ainda o chamado prato de nagé ou Nagé. Ele tem a forma arredondada, ou de travessa, e quase sempre pintado com temas figurativos. São os preferidos para servir o “molho lambão”, tipo de molho fresco feito à base de água, cebola, sal, cheiro-verde e tomates; e usado como acompanhamentos de peixes, como a tão celebrada lambreta. Há uma preferência pelas Nagés arredondadas para se servir a farofa de azeite, o arroz branco, o feijão de azeite, entre outas receitas.

A louça nagé um dos utilitários mais frequentes nas bancas dos mercados, nos restaurantes de comida baiana; e como se estas louças afirmassem um sentido de identidade visual das comidas da Bahia.

 

Raul Lody

Recife, 26 de fevereiro de 2016.

BrBdeB

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