A mulher, o tabuleiro e o ofício

Nos contextos da “peste”, o ofício e a arte de fazer comida estão ameaçados.
E um dos ofícios sob ameaça é o das baianas de acarajé.

 

Acarajé é uma comida do final da tarde. É uma comida de Iansã orixá dos ventos e que representa a mulher livre. Iansã, que também é conhecida por Oyá, ensinou a mulher o ofício de fazer acarajé. É comida rápida, de rua, para ser feita na hora. É uma comida de mercado, de tabuleiro. Comida quente, feita no azeite de dendê.

Cada vez mais a “comida” é percebida e valorizada como uma manifestação cultural que sensibiliza e se comunica com as pessoas. A comida exige todos os sentidos e sentimentos para ser, verdadeiramente, integrada ao corpo e a memória, ganhando valor simbólico.

Certamente na boca começa a emoção. É justamente na boca, apoiada pelos sentidos da visão, olfato, audição e tato, que a comida é integralmente entendida e assimilada. Comer não é apenas um ato biológico, é antes de tudo um ato tradutor de sinais, de reconhecimentos formais, de cores, de texturas, de temperaturas e de estética.

O valor cultural do ato de comer é cada vez mais entendido como um ato patrimonial, pois a comida é tradutora de povos, nações, civilizações, grupos étnicos, comunidades, famílias, pessoas. O sentido de pertencer a uma sociedade, a uma cultura, nasce primordialmente no idioma que falamos e na comida que comemos.

Incluir receitas, pratos, criar hábitos cotidianos é um “lugar” que define e aufere a pessoa o seu pertencimento, a sua identidade; é partilhar de um modelo que reúne ética, moral, hierarquia, e papéis sociais. A presença da matriz africana está principalmente nas receitas que fundamentam a nossa culinária, particularizando e construindo o paladar do brasileiro.

A nominação de produtos, ingredientes e temperos, apontam para a diversidade de povos e de civilizações que integram a nossa mesa e os nossos hábitos alimentares. Dos muitos pratos de matriz africana, o acarajé é um dos mais importantes, pelo que significa em âmbito social e religioso, e pelo que significa na afirmação de uma longa tradição de vender comida na rua, no caso com a baiana de acarajé.

A venda de acarajé no tabuleiro é uma permanência econômica que data da época dos “ganhos”. Era uma atividade que acontecia desde o período do escravocrata, aonde as mulheres iam para as ruas oferecer pratos salgados, doces, e bebidas artesanais como o “emú” – o “vinho de palma” ou “vinho de dendê”.

O acarajé, no processo histórico dos povos africanos no Brasil, marca o Estado da Bahia, e, em especial, a cidade do São Salvador. Há uma profunda identidade e pertencimento do acarajé com o povo baiano nas suas muitas tradições culturais. O acarajé é uma comida preparada com um tipo de feijão, que recebe o nome popular de “fradinho”; cebola, sal e é frito no azeite de dendê.

 

Baiana do acarajé Brasil Bom de Boca
Desenho de Raul Lody

 

O feijão é limpo, lavado, e passado em um pilão de pedra – pilão lítico. A massa é acrescida de cebola ralada, sal, e deve ser muito bem batida para manter a aeração e a textura necessária. O acarajé tradicional tem o formato e tamanho de uma colher de sopa. Deve ser comido quente, puro, ou com molho de pimenta; podendo conter ainda vatapá, caruru, salada, e camarão defumado, transformando-se num verdadeiro sanduíche, popularmente chamado de “sanduíche nagô”.

O acarajé está presente no cardápio sagrado do candomblé, sendo comida especial dos orixás Iansã e Xangô.
Há uma forte identidade do dendê nos cardápios que são preservados nas cozinhas dos candomblés. Ele marca territórios de receitas e de conhecimento tradicional que se amplia para as casas, para as comidas do cotidiano.

Os acarajés oferecidos aos orixás têm formatos especiais, e são ritualmente colocados nos pejis – santuários – com outras comidas. Comer acarajé no final de tarde na cidade do São Salvador é um costume que pontua o cotidiano, é um encontro, e reencontro, diário com a matriz africana. O tabuleiro é a referência.

O acarajé é frito na hora. O dendê fervente aproxima os devotados consumidores desse bolinho que traz o cheiro da Bahia à boca. Ele é uma refeição ou um lanche; com também é o abará, o bolinho de estudante, as cocadas, os bolos; entre outras delícias da venda pública e profundamente cerimonial no tabuleiro.

O acarajé nomina também um dos rituais mais importantes dos terreiros de candomblé. É o conhecido acarajé de Iansã, quando no barracão, espaço público, os acarajés são distribuídos a todos os presentes, oferta feita pelos orixás, e pelas pessoas em estado-de-santo, Iansã ou Oyá.

 

Comemora-se desse modo a festa, o momento religioso quando o alimento é a comunicação mais direta e eficaz entre a divindade e o homem.

 

Em gamelas de madeira ou em grandes utensílios de cobres, ou em tabuleiros semelhantes aos das vendas de rua estão repletos de acarajés que ritualmente serão distribuídos em momento especial, numa celebração onde todos participam; visitantes e membros da comunidade-terreiro.

Sem comida não há festa. Falar de festa na Bahia, no São Salvador, é falar de dendê, de temperos, de pimentas, de memórias ancestrais africanas nas escolhas dos ingredientes, nos modos de fazer e de servir; e principalmente de significar o há além do alimento, traduzir as relações e os sentidos que os terreiros de candomblé têm com o cotidiano da cidade.

 

RAUL LODY

 

BrBdeB

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