Comer com o sagrado

A relação entre a comida e o sagrado é fundamental, e ela dá aos ingredientes e aos processos culinários um verdadeiro diálogo simbólico, funcional, porque a comida tem a virtude de possibilitar encontros, e destacar pessoas, devoções, e as diferentes maneiras de ritualizar a natureza e a cultura.  A comida traz momentos de pertencimento e de alteridade.

A Bahia é um lugar privilegiado para estes encontros, pois há muitas festas de Largo, nos terreiros de candomblé, e nas casas. Nestes espaços sociais, a comida estará sempre marcando o seu território onde cardápios vão individualizar cada celebração. A comida é emblemática na fé e nas maneiras peculiares que cada um tem para se distinguir.

Os cenários das expressões coletivas trazem o sagrado interpretado em variados rituais da alimentação. E agora em janeiro, vivem-se as festas de Reis, que mostram a visita dos três Reis Magos ao local do nascimento do Menino Deus, e essa visita é lembrada e celebrada com festas populares, onde há manifestações como música, dança; e certamente muita comida e bebida.

 

Foto Jorge Sabino

 

Rabanadas ou fatias de parida e vinho tinto fazem a base das comidas que dão continuidade às devoções que fazem parte do amplo ciclo natalino que vai até 06 de janeiro, dia de Reis.

As manifestações populares são muitas, e mostram nos ternos de Reis os desfiles, e as outras formas de rememorar nas cidades, nas igrejas e nas casas a visita dos Reis magos ao Menino Deus, pois a fé é uma expressão pessoal, íntima, cultural e simbólica.

E o tempo especial da festa mostra como a comida é importante para reunir, louvar, sacralizar a natureza, manifestar tradição, reativar memórias ancestrais, valorizar os ingredientes da região e as comidas da própria festa.

Há um forte sentido autoral nas maneiras de se comunicar com o sagrado, seja no oferecimento do caruru para São Cosme e São Damião; na pipoca para São Lázaro, que é também Omolu; na pamonha e bolos de milho para lembrar São João; oferecer o mugunzá e o licor de jenipapo nas trezenas de Santo Antônio; nos acarajés das festas de Santa Bárbara, que é também Iansã; nas frutas com muita água que são relacionadas com as santas Nossa Senhora da Conceição e Santa Luzia. E na Semana Santa, há verdadeiros banquetes de “comidas de azeite”, onde vatapá, moquecas e frigideiras são oferecidos. E assim, sem dúvida, o melhor da fé passa pela boca, porque nada é mais sagrado do que a comida.

Entretanto essas e outras tantas festas, que patrimonialmente atestam as nossas identidades culturais, e livremente mostram como se expressa de fé criativa e tradicional, vivem um sério risco em virtude das muitas e diferentes ações de intolerância religiosa que o Brasil vive nestes últimos anos. O sagrado, e tudo que expressa devoção, vem sendo alvo de um perverso processo de discriminação e de “demonização” pela fé alheia.

Com isto não só as festas, mas também um amplo acervo de expressões e de linguagens que integram o nosso patrimônio cultural correm sério risco; e por isso é urgente valorizar as expressões populares, a arte popular, as festas, as diferentes formas de manifestar religiosidade, as comidas e seus rituais de comensalidade.

Todos têm o direito de optar por um modelo religioso, de ter hábitos alimentares diferentes, ou de participar de festas, de teatro tradicional, de danças, entre tantas outras formas de assumir os diferentes papéis sociais deste Brasil tão multiétnico e multicultural.

Comer não é apenas um ato nutricional, comer é um momento de recuperar memórias, de trazer referências, de marcar lugares de diferença, de garantir direitos sociais e culturais.   E o motivo que leva a sacralização das coisas está integrado à vida, e, desse modo, ao trabalho, aos ciclos festivos, à cada tema interpretado, onde mitos, santos, deuses, orixás, todos convivem dentro das relações sociais, das histórias, dos desejos de cada indivíduo de celebrar ludicamente com festa a comida e a sua comensalidade.

Raul Lody
02 de janeiro de 2017

 

(originalmente publicado no Jornal A Tarde – Bahia)

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