Comida é reinvenção. Porque reaproveitar é preciso

Cada vez mais são valorizados os produtos regionais, as receitas, e as maneiras de trazer à mesa os preparos culinários que são orientados por um aproveitamento mais racional dos ingredientes.

O uso de cada ingrediente na sua totalidade mostra a experiência de quem sabe o que é “o fazer a cozinha do cotidiano” nas suas dimensões funcionais, sociais e econômicas.
Cozinhar segundo as oportunidades de poder usar determinados ingredientes, ou adaptar as receitas a outros ingredientes, são maneiras de representar cada história familiar nos cenários da casa, da cultura e das histórias de cada comunidade.

Entretanto é nos cenários das casas onde se destacam os cadernos de receitas, que além de informar sobre como fazer os diferentes preparos indicam também sobre as melhores formas de aproveitamento dos ingredientes. Os cadernos de receitas trazem ainda a indicação dos produtos sazonais, “da época”, para os cardápios das estações. São receitas de cozinhas memoriais que ao mesmo tempo são dinâmicas.

foto de Jorge Sabino
foto de Jorge Sabino

Há atualmente uma necessidade crescente de recuperar receitas que têm no reaproveitamento dos ingredientes uma orientação para criação de pratos que são verdadeiras reciclagens.

Isso mostra como manter a qualidade da comida sem desperdiça-la; pois cada dia há mais necessidade de alimentar, de nutrir, de saciar a fome.
Para reaproveitar é preciso ter acumulado a experiência da sabedoria tradicional para entender o valor da comida tanto em sabor quanto em símbolo. Estas reciclagens de alimentos buscam além do uso total, e possível, de cada ingrediente, in natura ou processado, preservar a identidade e o sabor de cada preparo, pois comer não é apenas a ingestão da comida.

Na mesa baiana, por exemplo, há o pão reinventado na forma de vatapá. E, algumas receitas já consagradas estão incluídas como opções de cardápios de restaurantes, embora suas bases tenham surgido nos reaproveitamentos criativos das cozinhas nas casas. Refiro-me ao prato chamado de “roupa-velha”, receita que nasce da reciclagem da carne de boi cozida no feijão, ou de outro preparo, que no dia seguinte transforma-se nesta nova receita que recebe o acréscimo de outros ingredientes.

A carne é desfiada e acrescentada a um refogado feito com cebola, camarões defumados e azeite de dendê; ainda a carne desfiada pode também ser refogada com óleo e misturada com ovos. As farofas são um bom acréscimo para dar volume para estes pratos, que quase sempre são consumidos com farinha de mandioca. E, muitas vezes, o arroz branquinho, que foi feito na água e sal, é uma boa harmonização para o roupa-velha; e, com certeza os molhos de pimentas vão valorizar e ampliar o sabor da carne.

Este preparo na Bahia é ainda chamado de “te-conheço”, uma referência a comida que é reconhecida como do dia anterior e que retorna à mesa de forma modificada.
Algumas outras receitas são clássicas dentro dos cardápios dos reaproveitamentos, e há uma espécie de sequência para as reciclagens. Por isso, já se tornam esperadas receitas que vão ter como base caldos, carnes, embutidos, legumes, que fizeram parte de receitas anteriores. Falo dos cozidos, das feijoadas, das bacalhoadas que, em geral, são pratos preparados com grande quantidade de ingredientes.

Um dos casos mais recorrentes são os bolinhos de feijão, de bacalhau; as sopas feitas de feijões, as farofas e os pirões feitos com os caldos; além do quê, os próprios caldos dos cozidos e das feijoadas já são verdadeiras entradas das refeições.

A bacalhoada é também uma candidata para a roupa-velha; outra opção famosa é a fritada enquanto reaproveitamento de ingredientes, onde o ovo e a farinha de rosca se unem para formar esta receita.

Isso mostra que a reciclagem é também uma opção enquanto prato principal, e que se come com prazer.

A invenção de cada autor culinário quer encontrar na possibilidade dos recursos que ele tem na sua cozinha as diferentes formas de utilizar ao máximo determinado ingrediente para preparar e marcar uma espécie de assinatura culinária nas usas receitas.

Sem dúvida, a história da comida sempre aponta para uma cozinha que simboliza um lugar social e cultural, e que mostra o “quê” é possível ser comido e como deve ser comido.

A comida, então, representa uma referência da casa, da família, da região, da matriz étnica; de uma civilização. E assim, a cozinha baiana, é um caso exemplar dos reaproveitamentos, das reinvenções dos pratos e dos cardápios, sempre referenciados por uma forte presença cultural e histórica.

Raul Lody

 

(originalmente publicado no Jornal A Tarde)

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