Gilberto Freyre, açúcar e território

Comemoração dos 70 anos da publicação do livro Nordeste

A compreensão de Gilberto Freyre sobre o Nordeste se dá através de um profundo laço existencial, que inclui família, pesquisas de campo, teorias científicas; e principalmente o seu grande carinho pela região.

O livro Nordeste (1937) mostra a valorização ecológica, e especialmente humanista, da ocupação dos territórios, das matrizes culturais, e das maneiras de viver e se relacionar com a natureza.

Assim, pode-se situar Gilberto Freyre como um observador que busca ver o todo, ou quase. Seu interesse vai do geral para o particular, e passa pela estética regional, pelo açúcar, pela natureza não isolada do homem, pela história das sociedades do Nordeste; pela água, pelo bicho, pelo clima, pela comida, pela festa, pela tradição, pela religiosidade.

 

Foto Jorge Sabino

 

Gilberto Freyre tem uma concepção muito partícula sobre o Nordeste, a sua região. Assim, realiza trabalhos fundamentais, como o livro [dos mais queridos por mim] chamado Nordeste, publicado em 1937, e que traz pela primeira vez na língua portuguesa a palavra Ecologia.

“Este ensaio é uma tentativa de estudo ecológico do Nordeste do Brasil”.
(Freyre, Gilberto. Nordeste. 1967: xi)

Gilberto destaca diferentes ecossistemas do Nordeste, onde ele destaca a ocupação por modelos ibéricos, africanos e autóctones. Os cenários naturais têm vocações e diferentes tipos de vegetação, de terra, de água, e de ciclos climáticos.

“O critério deste estudo já disse é um critério ecológico. O centro de interesse, do homem, fundador da lavoura e transplantador e criador de valores à sombra da agricultura, ou antes da monocultura da cana. O homem colonizador, em suas relações com a terra, com o nativo, com as águas, com as plantas, com os animais da região ou importador da Europa ou da África”. (Freyre, Gilberto. Nordeste. 1967:xi)

A pesquisa de campo, o estar em campo, enquanto uma maneira de fazer sociologia e antropologia e, no caso, fazer ecologia, mostra a orientação que Gilberto Freyre teve de Franz Boas, que transgrede com a antropologia física, própria do início do século XX, e valoriza as vertentes culturais para o entendimento do homem e de sua sociedade.

“Impossível afastar a monocultura de qualquer esforço de interpretação social e até psicológica que se empreenda do Nordeste agrário. A monocultura, a escravidão, o latifúndio – mas principalmente a monocultura – aqui é que abrigam na vida, na paisagem e no caráter da gente as feridas mais fundas. O perfil da região é o perfil de uma paisagem enobrecida pela capela, pelo cruzeiro, pela casa-grande, pelo cavalo de raça, pelo barco a vela, pela palmeira-imperial, mas deformada, ao mesmo tempo, pela monocultura latifundiária e escravocrática; esterilizada por ela em algumas de suas fontes de vida e de alimentação mais valiosas e mais puras; devastada nas suas matas; degradada nas suas águas”.
(Freyre, Gilberto. Nordeste. 1967: xii)

Ainda, Gilberto enfatiza o convívio com o mar, com os rios, com a terra de massapé, com o sol.  Sol emblematicamente tropical.

“A natureza regional tende, não há dúvida, a fazer o homem, o grupo, a cultura humana à sua imagem; mas, por sua vez, o homem, o grupo, a cultura humana agem sobre a natureza regional, alterando-a de modo às vezes profundo. Há uma contemporização entre as duas tendências. De modo que o conceito de Ratzel de que ‘cada povo traz em si as feições da região que habita’ pode ser completado dizendo-se que não há região habitada que não tenha sobre o solo, a vegetação, a vida animal, a marca especial do povo que a habite: não só da sua técnica de produção – como se apressaria em salientar um marxista ortodoxo – como do conjunto de usa cultura e de sua personalidade ou ethos”
(Freyre, Gilberto. Nordeste. 1967: xxii)

E continua Gilberto:

“No Nordeste da cana-de-açúcar, a água foi e é quase tudo. Sem ela não teria prosperado do século XVI ao XIX uma lavoura tão dependente dos rios, dos riachos e das chuvas; tão amiga das terras gordas e úmidas e ao mesmo tempo do sol; tão à vontade dentro de uma temperatura média que em Pernambuco é de 26º, 5 e de chuvas; tão feliz numa atmosfera cheia de vapor de água”. (Freyre, Gilberto. Nordeste. 1967:19)

Para Gilberto a paisagem é uma síntese do meio ambiente, das ocupações e das maneiras de interpretar a natureza. As chegadas dos colonizadores com vontade extrativista, e as ocupações com o mando europeu, relativizando, permanecem até hoje na busca de conquistar e invadir a natureza.

“(…) como disse Frei Vicente de Salvador, da maioria dos colonos do seu tempo. Nem dos que a célebre crônica dos princípios do século XVIII – os Diálogos das Grandezas – retratou em traços tão vivos; os que aqui apenas se contentavam em fazer seus pães de açúcar, não se dispondo a plantar árvores frutíferas nem fazer benfeitorias nas plantas nem a criar gado; nada que custasse muito esforço ou levasse tempo. Só a monocultura de lucros imediatos, que entretanto não deixava de exigir condições de estabilidade e de permanência, dispensadas pelo simples comércio de pau-de-tinta e de peles”.
(Freyre, Gilberto. Nordeste.1967:101)

As peculiaridades da região Nordeste, e as destinações naturais do Litoral, da Zona da Mata, do Agreste e do Sertão oferecem distintas ocupações aonde há um diálogo permanente entre o sol e a água. Numa visão ancestral e mitológica, o masculino e o feminino são relacionados com resultados idealizados de fertilidade, e da forma de vida do homem, da terra, das plantas, e dos animais

Nordeste, início da civilização luso-tropical do Brasil. Um tipo de padrão, de marca, de ocupação da natureza pelo homem.

Assim, o entendimento avançado de Gilberto Freyre sobre o Nordeste e, em especial, sobre o Litoral e a Mata Atlântica, no território consagrado como Zona da Mata, aponta para uma verdadeira civilização do açúcar da cana sacarina, a civilização do doce e dos processos interculturais aonde se revela o pertencimento a uma região.

 

Raul Lody

BrBdeB

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