Quitanda: do quintal à mesa ou os ofícios das doceiras das Gerais

Os ofícios permitidos para a mulher no período colonial, e que até hoje marcam de maneira expressiva o seu lugar social na nossa cultura multiétnica machista, é o de fazer comida e, em especial, a comida doce.

Fazer comida, servir e vender comida, nascem no domínio das cozinhas, no poder de transformar ingredientes e de comunicar as tradições à mesa, que passam a acontecer também nas feiras, nos mercados, nos restaurantes; e em tantos outros espaços de sociabilidades e de comensalidades.

Os saberes reunidos pelas mulheres nas cozinhas mostram-se nos diversos processos e técnicas culinárias, que ainda são marcadas pelo aproveitamento dos ingredientes, pela reinvenção de receitas dentro das possibilidades sazonais, o que já revelava uma consciência sobre sustentabilidade e biodiversidade.

Nestes contextos, vê-se, com destaque, o papel “de dar de comer” da mulher, o que reforça o seu lugar histórico na produção das comidas, tanto para possibilitar a alimentação no cotidiano, nas casas, nas festas, quanto para os ofícios de vender comida.

Vender comida nas ruas, oferecidas por ambulantes nos tabuleiros, nas gamelas, nos balaios, nas panelas, nas caixas de vidro, entre tantas outras formas de mostrar e transportar os sabores, são revelados com os chamados “ganhos”, que significa ganhar com a venda de comidas; que, na sua maioria, eram preparadas pelas mulheres dos colonos lusitanos. Elas colocavam nos ganhos diferentes cardápios, sendo o trabalho da venda realizado pelas então chamadas “negras de ganho”.

E assim, levavam para as ruas muitas das receitas da casa, da família, e ainda buscavam chegar ao gosto mais popular, e, desta maneira, garantir e ampliar as vendas. Isso num exercício profundo do que chamamos hoje de fast food.

Também muitas mulheres africanas, e crioulas, faziam comidas que elas mesmas comercializavam nas ruas, normalmente em locais de maior concentração de pessoas que trabalhavam como prestadores de serviços, e que estavam em condição escrava, os crioulos.

Estabelecidas em pequenas lojas, em quitandas, ou em mercados, algumas vendedeiras conhecidas como tias da Costa, filhas e netas de africanos, vendiam produtos como: panos de alaká, palha, obi, orobô, contas, sabão, todos vindos da Costa africana, geralmente provenientes dos grandes mercados da Nigéria e do Benin.

Estes locais, as quitandas, funcionavam ainda como verdadeiros espaços de reafricanização, numa busca de memórias e de objetos que pudessem trazer a África.

As comidas de matriz africana que eram vendidas nas ruas, e, em especial, o acaçá, que nasce do “oká ogi”, e o acaçá de leite, temperado com açúcar e leite, faziam parte de uma das principais atividade do ganho com a venda de comida.

As comidas feitas partir do milho branco, as comidas feitas de folhas, tais como os carurus e os efós com azeite de dendê; e os feijões em diferentes interpretações com vísceras e carnes salgadas, eram frequentes nas feiras e nos mercados.

Nas ruas, os ganhos com as quitandas mostravam também que a cozinha lusitana, na sua essencialidade, era fortemente marcada pela civilização Magrebe, África mediterrânea.

 

(…) a doçaria de rua aí, desenvolveu-se como em nenhuma cidade brasileira [Salvador] estabeleceu-se verdadeira guerra civil entre o bolo de tabuleiro e o doce feito em casa (…) quitutes feitos em casa e vendidos nas ruas em cabeça de negro mas no proveito das senhoras: mingaus, pamonhas, canjicas, acaçás, arroz-doce, feijão de coco, angus, pão-de-ló de arroz, rolete de cana, rebuçados.” (Casa-Grande & Senzala. Gilberto Freyre)

 

Dentro destes muitos preparos, há uma forte tendência para as comidas doces feitas à base de mandioca, milho, ovos, açúcar; e especiarias como cravo canela, erva-doce, pimentas; e os derivados do leite do gado vacum. É a partir destes ingredientes que nascem os cardápios familiares, cardápios que são também comercializados nos “ganhos”, nas “vendas”, e nas “quitandas”. Quase sempre estes cardápios eram consumidos nas ruas, ou então vendidos de porta em porta.

E desta maneira, trago um olhar ampliado sobre os significados, sociais e econômicos, dentro da etnoalimentação, para um entendimento plural do termo quitanda. Porque há diferentes tipologias de ‘quitandas’, e de inserções nos espaços das culturas ibero africanas.

No caso especial das quitandas das Gerais, de Minas Gerais, há uma forte relação com a agricultura doméstica, familiar, na elaboração das receitas. E é a partir daquilo que o “quintal” pode oferecer, é que se cria o cardápio. Por isso, é comum ouvir que estas quitandas vão do quintal à mesa.

Pode-se inicialmente observar que a quitanda das Gerais é um acervo de cardápios que se afirmam nas variedades de receitas, e nas habilidades e na arte da cozinha. Desse modo, identifica-se o ofício da mulher quitandeira.

No entendimento de quitanda, nestes contextos das Gerais, vigora os saberes culinários das famílias com os seus cadernos de receitas, que são transmitidos de geração a geração.

Assim, as cozinheiras-quitandeiras recuperam receitas, como, por exemplo, do cubu; do rocambole de doce de leite e coco, das rosquinhas de amendoim, do biscoito frito; da rosca trança de batata-doce e coco, do pão de queijo, da broinha de maizena, do bolo de milho e queijo; e de muitos tipos de pães, folhados, filhoses, sonhos, cavacas, doces de ovos, frutas cristalizadas e em calda; num conjunto diverso de tradição e de criação.

Toda esta produção artesanal, e familiar, estende-se para o comércio nas: padarias, confeitarias, mercados, feiras; nas encomendas e no delivery. Porque teremos tantas quitandas da Gerais quantas forem as receitas e a organização de cada cardápio. E cada quitanda será a referência e a identidade de cada família.

Destaco que a denominação quitanda nas Gerais continua. Contudo, distanciada dos seus rituais sociais e da participação marcante da mulher afrodescendente. O termo quitanda, neste caso, é apenas uma apropriação da palavra em língua Kimbundu, do macro-grupo etnolinguístico Bantu, para a designação de mercado.

Assim, no entendimento contemporâneo das Gerais sobre a quitanda, vigora o valor da diversidade, e da complexidade, de cada cardápio que se revela na tradição e na assinatura de cada doceira. Tudo isso reforça uma identidade mineiramente barroca.

RAUL LODY

BrBdeB

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