Um Mapa culinário do Brasil

O olhar multicultural de Gilberto Freyre

Diz Gilberto Freyre:
“Venho há anos, tentando organizar um mapa culinário do Brasil em que se exprima uma geografia não da fome, mas da velha e autêntica glutoneria brasileira. Que entre nós existe glutoneria, sem deixar de haver fome. Existe a arte da boa cozinha, sem deixar de haver falta ou escassez de carne sangrenta, legume verde e até peixe fresco, para serem cozinhados de gostosas maneiras tradicionais e regionais”. (Mapa Culinário do Brasil in Diário de Pernambuco, anos 1950)

Avançada esta leitura sobre a comida, aonde se agrega um reconhecimento do bem comer às características dos ingredientes locais; e, assim, indica-se que certamente comer não é apenas um momento de se “encher o bucho”, pois há prazer e sentimento agregado à comida, e aos momentos sociais de comer.

É um desejo por um mapa que transgrida o apenas localizar, porque há interpretações; revelações de etnicidade, de pluralidade, de preservação dos saberes, de espaços das cozinhas; muitos, tantos temas, uns patrimoniais, outros autorais. Seriam lugares para se viver cada processo e trazer os ingredientes à boca do homem.

Ainda de Gilberto, neste seu artigo do jornal Diário de Pernambuco:
“Um mapa do Brasil fixando as principais especializações regionais da cozinha nacional, começaria com o sarapatel de tartaruga do Amazonas e a sopa de castanha do Pará: o Pará do açaí. Mas não pararia no açaí. Não ficaria no Pará.  Viria até o churrasco sangrento do Rio Grande do Sul acompanhado de mate amargo. Incluiria o “barreado” paranaense. O lombo de porco mineiro. O vatapá baiano. O cuscuz paulista. O sururu alagoano. A fritada de caranguejo paraibana. O arroz de cuxá maranhense. O quibebe do Rio Grande do Norte.  A paçoca cearense. O pitu pernambucano”.

Sem dúvida, há uma busca pelos sistemas alimentares na sua diversidade e na sua identidade, e em Gilberto Freyre esta busca nasce no açúcar, nas suas formas de ver e de traduzir receitas e cardápios. E assim ele percebe que o doce na sua amplitude de comida de festa para os momentos especiais das casas, das famílias.  São preparações artesanais, de doceiras, de confeiteiros, de autores do açúcar, tema preferencial de estudo para Gilberto.

Ele quer mostrar as relações sociais e os rituais do cotidiano no Nordeste; as cozinhas dos conventos medievais de Portugal na sua realização de uma doçaria sacro-erótica, e ir até aos doces de rua, de feira, como o “nêgo-bom”, um doce feito de banana e açúcar.

A leitura do que é nacional, no nosso caso é universal, por causa da formação complexa e diversa das “nossas cozinhas brasileiras”. São cozinhas globalizadas na sua história; e, a partir do século XVI, na sua variedade de ingredientes, de técnicas culinárias, de receitas que aproximam o Ocidente do Oriente; e da milenar cozinha dos povos americanos.

Gilberto vê a diversidade, e busca por um verdadeiro mapa que seja tão amplo quanto possível de diferentes bases étnicas, para desta maneira entender que os sistemas alimentares também são plurais e representam a variedade do que é a comida, ou o que é o “comer à brasileira”.

Em pleno século XXI, o desejo de Gilberto ainda é contemporâneo, pois tem seus fundamentos na história social, econômica e culinária, e tudo isto se junta aos movimentos sociais e midiáticos do nosso século sobre a comida.

O boom da gastronomia no Brasil, e no mundo, aponta tendências, estilos, movimentos globais de consumo, e inúmeros fenômenos da moda sobre este tema preferencial do século XXI que é a comida na sua diversidade.

A comida passa a ser o principal objeto de desejo que vai além do ato funcional de se alimentar.  A comida nas sociedades globalizadas, onde o restaurante “estrelado” tem o status de um lugar de consagração, como se dava nas catedrais góticas que eram um lugar de êxtase, de prazer físico e transcendental.

Juntamente com estes movimentos de base comercial e midiática, o mundo também quer buscar e reencontrar suas bases, como, por exemplo, identidade, alteridade, reconhecimento de sistemas alimentares tradicionais, e tantas outras formas de se acumular sabedorias de povos e culturas.

 

Foto Jorge Sabino

 

 

A comida é uma forma imediata com a qual se pode reconhecer um povo, uma cultura, um território, pois ela é um repertório que traz técnica, seleção de ingredientes identitários, e assim mostra o seu mais profundo sentimento de pertença.

O sentido social do alimento é crescente e vem formando um grande mercado que traz a comida como tradutora das tendências nestes contextos globalizados.  A comida-produto, a comida-fashion, a comida-alimento; e a comida para ser vivida à mesa com todos os rituais e maneiras de promover prazer e sociabilidade; e assim se pode ver o crescimento de movimentos sociais de valorização da comida como o Slow Food.

As questões apresentadas por Gilberto Freyre, nos anos 1950, na busca por um mapa culinário do Brasil, é na sua essencialidade uma busca por um entendimento de território, de meio-ambiente, de produtos sociais, de conhecimentos culinários ungidos de técnicas, utensílios, estética; e dos momentos à mesa.

Destacar que em Gilberto há um forte sentimento de que a comida é um repertorio, um acervo cultural e social; e assim ela é, ao mesmo tempo, um patrimônio pessoal e coletivo de povos, pois os saberes sobre fazer e servir comida nascem nos experimentos do cotidiano, e da sacralidade das festas.

E nestes muitos movimentos globais sobre comida e sociedade que destacam a sabedoria do fazer a comida, são recuperados mercados consumidores e estilos de se comer.

Hoje, os conceitos de mapas são muito mais dinâmicos porque o mundo se transforma numa velocidade difícil de acompanhar, há crises no meio-ambiente; há movimentos de populações do mundo em fuga, os refugiados das guerras; da intolerância religiosa.

Nesses contextos tão intensos, o homem tenta recuperar as suas mais profundas referências de indivíduo, de pertencimento à história de um povo, de uma região; e isto se dá preferencialmente pela comida, com os saberes agregados ao ato de saber fazer determinada receita.

Estas populações de refugiados fazem parte de uma nova diáspora de sistemas alimentares do Oriente e da África que seguem para a Europa, as Américas.  São intensos movimentos sociais e culturais que transformam os conceitos de comer neste mundo globalizado.

Assim, o entendimento de território, de “mapa”, deve ganhar uma nova leitura para que então possa se tentar compreender este momento da história da humanidade. Mapas reais, de territórios, e mapas das manifestações sociais por meio da comida, para sobreviver e para recuperar elos de identidade.

 

 

Raul Lody
Recife, 08 de novembro de 2015.

BrBdeB

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