Nas sociedades contemporâneas o que se entende por identidade está em pleno processo de deslocamento ou fragmentação. Certamente no olhar patrimonial busca-se e até justifica-se as ações do Estado, enfatizando o conceito de identidade e sujeito, que é importante argumento para o que se entende por identidades culturais – aqueles aspectos das nossas identidades que surgem do nosso pertencimento às culturas, grupos étnicos, linguísticos, religiosos, e principalmente na construção do que é nacional. Se há um forte desejo de revelar, salvaguardar, documentar, e registrar fenômenos que têm evidente concentração de identidade, ou de identidades, é porque nas sociedades contemporâneas, pós-modernas, chega-se ao sentimento da crise de identidade: “a identidade somente se torna uma questão quando está em crise”. (Mercer, 1990)
O lugar da identidade no âmbito do patrimônio chancelado pelo Estado é também um lugar escolhido e identificado. Há uma espécie de atestação no reconhecimento, uma diplomação que certamente legitima e expõe a categoria comida e povo ou comida é povo.
Além da baiana de acarajé, a tacacazeira – vendedora de tacacá –, a tapioqueira – vendedora de tapioca –, ou ainda as vendas ambulantes de acaçá de leite, de pamonha de carimã, de doce japonês; de pamonha de milho, de algodão-doce, de maçã do amor, entre tantas outras comidas que funcionalmente são feitas para consumo rápido na rua, todas marcando territórios próprios de representações e de memórias de lugares. Comer na rua e ou comer em casa provocam diferentes interações entre um tema dominante que é a identidade.
Comer o sarapatel em banca especial do mercado popular, ou comer tapioca com a assinatura de notável tapioqueira no Alto da Sé em Olinda, ou ainda comer o vatapá pernambucano concentrado no amendoim no “Buraquinho”, restaurante herdeiro do Buraco de Otília, no Recife, é aliar ao ritual de comer a marca, grife da tradição do fazer, do servir, e especialmente de viver o lugar, o território.
Certamente a construção do paladar é uma construção da cultura, e assim se formam os conceitos dos sabores: de salgado, de doce; do que é quente ou frio, e não apenas por sensações físicas, mas simbólicas. Assim, o paladar amplia as relações com o mundo representado: estética, compromissos religiosos, códigos éticos e morais, gênero, poder entre tantos outros.
A partir de Portugal está a nossa base multicultural da alimentação. Portugal para conservar comida e ampliar os períodos no mar, as especiarias assumiam valor comestível e medicinal, pois ainda em pleno Renascimento na Europa o grama do açúcar da cana sacarina equivalia ao grama do ouro.
Canela do Ceilão, cravo da Índia, manga, coco verde, cana sacarina também da Índia, café da Etiópia, África Oriental; inhame da África Ocidental, o dendê da África Ocidental e da África Austral, fruta pão e jaca da Indonésia, ainda as frutas cítricas, a horta, os legumes organizados em verdadeiros processos civilizatórios dos povos Magreb, unem-se ao milho, a batata, a mandioca, nativas do Novo Mundo, das Américas, e assim, sem dúvida, dá-se a construção do gosto, do paladar brasileiro, em pleno processo de globalização.
Enquanto isto, foi se mantendo a tradição, vinda de Portugal, de muito quitute mourisco ou africano: o alfenim, o alfeolo, o cuscuz, por exemplo. Foram eles se conservando nos tabuleiros ao lado dos brasileirismos: as cocadas – talvez adaptação de doce indiano –, as castanhas de caju confeitadas, as rapaduras, os doces secos de caju, o bolo de goma, o mugunzá, a pamonha servida em palha de milho, a tapioca seca e molhada, vendida em folha de bananeira, a farinha de castanha em cartucho, o manué. E o tabuleiro foi se tornando, nas principais cidades do Brasil, e não apenas do Nordeste, uma arte, uma ciência, uma especialidade das “baianas” ou das negras: mulheres, quase sempre imensas de gordas que, sentadas à esquina de uma rua ou à sombra de uma igreja pareciam tornar-se, de tão corpulentas, o centro da rua ou do pátio da igreja. Sua majestade era às vezes a de monumentos. Estátuas gigantescas de carne. E não simples mulheres iguais às outras. (Freyre, Gilberto. Manifesto regionalista)
Sem dúvida, os interesses patrimoniais remontam a tantos outros movimentos organizados, tendo sempre o eixo da identidade como um lugar de atenção, como um território concreto de ocorrência, diga-se os regionalismos localizados, os tradicionalismos, por exemplo, dos gaúchos emblematizados no churrasco. São gaúchos no Rio Grande do Sul e são gaúchos em qualquer outro lugar, e além do churrasco se identificando também pelo chimarrão. São essas experiências de identidade na globalização na fragmentação do território.
A nostalgia da identidade em tonalidade quase Proustiana em busca do feijão com a farinha de mandioca perdidos é uma das bases do encontro pela boca do que é brasileiro. Diga-se que o Brasil assume uma longa tradição de valorizar a comida e de ter na comida um valor agregado ao desenvolvimento social e econômico.
Aliás o ideal seria que o Recife tivesse o seu restaurante regional, onde se cultivassem a doçaria uma riqueza, hoje dispersa em manuscritos de família, esforço de que o Primeiro Congresso Regionalista na busca dos que cooperem para a reunião dessa e a culinária antiga, no meio de um resto de mata também antiga e regional como a de Dois-Irmãos, onde a pessoa da terra ou de fora se regalasse comendo tranquilamente sua paca assada ou sua fritada de goiamum com pirão e molho de pimenta à sombra de paus d’arco, de visgueiros, de mangueiras; onde crianças se deliciassem com castanha confeitada, garapa de tamarindo, bolo de goma (…). (Freyre, Gilberto. Manifesto regionalista).
Sem dúvida, o turismo tem importante foco na comida, além do monumento, do museu, do ideal nostálgico do que é antigo e ou histórico. Contudo, novamente a comida é o registro sensível mais direto na compreensão ecológica e cultural de um lugar, certamente uma conduta alimentícia como forma, e emoção, de experimentar e viver pela boca a plenitude do território. Contudo continua-se tocando em um tema dominante que é o da identidade preferencialmente formada pelo pertencimento a uma cultura nacional.
A busca do emblemático como quase síntese da identidade concentrada dialoga e se dinamiza nos confrontos do que é global e local. A uniformidade e a diversidade, a indústria e a natureza, o mercado e o autoabastecimento, a modernidade e a tradição, e ainda tocando nos campos da modernidade tardia e dos impactos da fragmentação do território, e no que é idealmente regional.
Certamente, a comida é o fenômeno mais aberto e dinâmico no distanciamento que se dá entre identidade e território. Ao mesmo tempo em que uma baiana de acarajé frita seu acarajé na frente do freguês no terreiro de Jesus, Salvador, o mesmo poderá ocorrer no Central Park, Nova York; na feira hippie no Rio de Janeiro, numa feira de turismo sobre a Bahia em Tóquio, Japão. Contudo é o mesmo acarajé, é o mesmo ofício, em tão globalizantes espaços.
A comida tem vocação patrimonial de testemunho, deslocado em muitos e diferentes movimentos, contudo sempre reconhecidos no ideal de lugar, de identidade tradicional. Creio um dos principais méritos da comida é atribuir valor de povo, de país, de nação.
RAUL LODY