O cuscuz e os seus sabores mediterrâneos na construção dos nossos paladares

O cuscuz e os seus sabores mediterrâneos na construção dos nossos paladares

O que é o Mediterrâneo? Mil coisas ao mesmo tempo. Não uma paisagem, mas inúmeras paisagens. Não um mar, mas uma sucessão de mares. Não uma civilização, mas civilizações sobrepostas umas às outras. Viajar pelo Mediterrâneo é encontrar o mundo romano no Líbano, a pré-história na Sardenha, as cidades gregas na Sicília, a presença árabe na Espanha, o Islã na Iugoslávia. É mergulhar nas profundezas dos séculos, até as construções megalíticas de Malta ou até as pirâmides do Egito (…) É, ao mesmo tempo, imergir no arcaísmo dos mundos insulares e surpreender-se diante da extrema juventude das cidades muito antigas, abertas a todos os ventos da cultura e do lucro e que, há séculos vigiam e comem o mar.

(Fernand Braudel)

Mediterrâneo Magreb é o moçárabe na civilização do açúcar

O viajante que chega ao Recife por mar, ou de trem, não é recebido por uma cidade escancarada à sua admiração (…) Com o recato quase mourisco do Recife, cidade acanhada, escondendo-se por trás dos coqueiros; e angulosa, as igrejas magras, os sobrados estreitos, alguns, ainda hoje, com quartinhas às janelas, com gaiolas de passarinhos, de papagaios e até de araras, junto às varandas de ferro rendilhado (…).”

(Freyre, Gilberto. Guia prático, histórico e sentimental do Recife)

 

Profundamente moçárabe, esse Recife ibérico manteve muitos modos do, então, Califado do Córdoba, sul da Espanha.

A mulher no islã é a mulher da casa, da comida, dos filhos e do marido. A casa protege. Quando em público, esta mulher se inunda de panos, pois, o corpo é tema da privacidade.

As cores sóbrias das senhoras, lusitanas e luso-brasileiras, quando publicamente seguiam para as missas, e outros acontecimentos como as grandes procissões, e entre elas a de Corpus Christi, certamente a mais teatral de todas, faziam apenas revelar, muitas vezes, chinelas de couro de ponta virada – à mourisca.

Ainda, as roupas de trabalho e do cotidiano dos escravos, pano alvejado, roupas aproveitadas dos senhores, ou então no tempo das festas, as roupas exibiam bordados e até joias, para os senhores exibirem o seu poder por meio das roupas especiais dos escravos da casa.

Sem dúvida, orientalismos fundamentais de imaginário barroco co-formador dessa roupa que no caso e de revelar o corpo.

 

Os trópicos áridos por exemplo, possuem uma tradição de ruas estreitas e de arcadas, ruas às vezes totalmente cobertas, proporcionando sombra e alívio contra o calor e a claridade.”

(Freyre, Gilberto. Novo Mundo nos Trópicos. P. 26)

 

Os panos protegem também do calor, criando entre o corpo e o pano uma temperatura mais amena, menor do que a externa. Daí as roupas dos povos dos desertos, em especial, dos que vivem próximo do Saara exibirem grande quantidade de panos, para assim melhor proteger, guardar o corpo do sol.

Mulher, no Brasil do século XIX, quase de burca, totalmente coberta, incógnita, sob o poder masculino na posse e na guarda da mulher branca.

Contudo, um poder foi exercido na casa, diga-se na casa grande do engenho, pela mulher. Estava no comando das cozinhas com as comidas e, em especial, os doces. Fazer doce, um predicativo de valorização extrema de uma mulher idealizada como pálida, frágil; mas que nem sempre apresentava o biotipo clássico de um ideal grego. Mulheres gordas, suando muito e comendo muito açúcar, com dentes também nem sempre para serem vistos.

Roupas, comportamentos, formas de lidar e de entender o próprio corpo, atestam aspectos ainda carentes de maiores leituras, que são os da marca matricial afro-muçulmana, afro-islâmica, moura, moçárabe ou Magreb, na vida e na civilização brasileira.

 

E não só o algodão, o bicho-da-seda e a laranjeira introduziram os mouros na Península: desenvolveram a cultura da cana-de-açúcar (…). O mouro forneceu ao colonizador do Brasil os elementos técnicos de produção e utilização econômica da cana-de-açúcar.”

(Freyre, Gilberto. Idem, ibidem. P. 289)

 

Sem dúvida, a colonização africana no Brasil ocorre por dois vetores. O primeiro é com o homem lusitano aculturado pelo Magreb, por meio dos povos mediterrâneos do norte do continente africano, que permaneceram séculos na Espanha e em Portugal, coformando assim a civilização Ibérica. O segundo vetor ocorre com o tráfico de africanos em condição escrava, que se dava entre a costa ocidental, centro-atlântica e oriental africana e a costa brasileira. Isto se deu por trezentos e cinquenta anos, a partir do século XVI.

Pode-se dizer, então, que o brasileiro é bi-africanizado, mantém memórias, costumes e demais padrões culturais de uma África islamizada, moura, além de muitas matrizes originárias de grupos étnicos da África Ocidental, Austral e Oriental.

O Recife é construído por um açúcar de mão e inspiração muçulmana, embora oficialmente de colonização europeia. Gilberto Freyre destaca as casas, os hábitos, as modas e os modos de uma sociedade patriarcal profundamente moçárabe, vivendo no cotidiano e na festa as expressões que identificam modelos e comportamentos orientalizados e, em especial, a mulher portuguesa que assume um corpo e uma estética muçulmana.

Destaque para a gelosia ou muxarabi – treliças de madeira que compõem espaços arquitetônicos, protegendo, guardando, dando total intimidade a mulher portuguesa, contudo, moçárabe, africanizada.

Essa relação entre corpo e espaço, interior e exterior, privado e público, casa e rua, está fixado na roupa, cuja função é tapar totalmente o corpo, mantendo o mesmo princípio da casa protegida pelo muxarabi.

 

Agora à boca

O cuscuz é o prato nacional do Magreb, ou seja, Marrocos, Argélia, Tunísia, Líbia e Egito. De procedência Bérbere, o cuscuz é uma significativa especialidade local.

O cuscuz, em si, é uma espécie de semolina extraída dos grãos do trigo. Até pouco tempo atrás, uma família carregava o moinho com o seu grão adquirido no mercado, porque vinha já macerado, processado finamente, segundo a preferência. Depois, em casa, a mulher colocava o grão em uma grande gamela de madeira, e pulverizando-o pouco a pouco com água, então o esfregado entre os dedos de modo que cada grão se umedeça. Isto se faz para que os grãozinhos permaneçam separados durante o “sucessivo” cozimento a vapor.

Hoje, por comodidade, quase todos adquirem a farinha já pronta. São infinitas as versões, regionais e familiares, deste prato. Cada vez é diferente: as mulheres colocam à prova, aí, todas as suas habilidades para variar as receitas, porém sendo fiéis à tradição.

O cozimento do cuscuz é feito no vapor, numa panela especial que é colocada sobre uma caçarola que contém um guisado ou um caldo. Este guisado, em geral, é preparado com carne, habitualmente carneiro ou galinha, e diferentes legumes. Também, a parte, estão presentes o grão-de-bico, e às vezes também uvas passas.

Frequentemente colore-se o caldo de vermelho com o uso de tomate, ou de amarelo com o açafrão. Também se colocam diferentes especiarias em quantidades de modo que não se reconheça especificamente cada uma.

Com parte do caldo se prepara um molho marcadamente picante com pimenta de Caiena ou “chili” – pimenta malagueta –, e um concentrado de pimentão vermelho chamado de “harissa” (pimentão vermelho picante, alho, coentro seco, sementes de cariz – alcaravia –, menta seca, folha de coentro fresco, sal, azeite de oliva). Este molho é servido à parte, colorindo com maior intensidade o prato, ou seja, mais apimentado, para aqueles que desejam o sabor mais inflamado e inebriante.

Na cidade de Fez, Marrocos, os guisados de carne são mais leves: os ingredientes veem cozidos e condimentados com muita delicadeza. Na Tunísia e Argélia, são diferentes, são mais substanciosos e saborosos. A carne, e às vezes também os legumes, são antes corados em azeite de oliva. Os tunisianos parecem preferir os molhos decisivamente picantes, e por isso colocam pimenta de Caiena e “chili”. Os argelinos trazem do passado o tomate, todavia os marroquinos preferiram o perfume e a cor dados pelo açafrão.

Uma forte influência francesa sobre a cozinha argelina induziu às últimas gerações a usar, nos guisados, legumes europeus, como o feijãozinho, ervilha, e cenoura.

A preparação do cuscuz é muito simples, entretanto pede um tratamento preciso: os grãozinhos de semolina devem ficar inchados, leves, aveludados, e bem separados um do outro. Não tomando cuidado, o cuscuz sairá grudado e pesado. Os grãos não devem cozinhar no caldo ou no molho, mas sempre no vapor; nem também tocar líquido da panela sobre a qual a cuscuzeira está colocada.

A cuscuzeira, ou seja, o recipiente tradicional, de cobre ou louça de barro, ou com a inovação mais recente de alumínio, é constituída de duas partes. A parte inferior é um recipiente redondo no qual se cozinha o guisado. A parte superior tem uma forma semelhante, porém possui o fundo com “furinhos”. Aí se põe o cuscuz. Se não encontrar uma cuscuzeira tradicional, pode recorrer a uma panela a vapor ou a uma peneira metálica que se adapte perfeitamente a uma grande caçarola.

Molhe o cuscuz com um pouco de água fria, trabalhando-o com os dedos de forma que não se forme grumos. Derrame-o na parte superior da cuscuzeira quando faltar cerca de uma hora para terminar o cozimento do guisado, que está fervendo no recipiente inferior. Mexa os grãos com as mãos para organizá-lo e permitir que se inchem melhor. Deixe-o exposto ao vapor por cerca de trinta minutos. Depois passe o cuscuz para uma ampla terrina, e borrife-o abundantemente com água fria e o mexa com uma colher para esfarelar eventuais grumos, e separar os grãos que com água se juntaram e colaram.

Agora, desejando, pode acrescentar um pouco de sal (às vezes, contemporaneamente, se une uma colherada de azeite de oliva). Passe novamente o cuscuz para a parte superior da cuscuzeira e prossiga o cozimento a vapor por mais trinta minutos. Alguns preferem cozinhar o cuscuz expondo-o apenas ao vapor da água fervente, e então o serve com um guisado preparado à parte.

Existe hoje no comércio o cuscuz pré-cozido, cuja preparação pede pouquíssimos minutos. Siga as instruções que encontrará na embalagem sobre o preparo do cuscuz.

 

Outros tipos de cuscuz Magreb

Cuscuz com nozes

É um prato delicioso. Se pega a quantidade necessária de carne de vitelo, de carneiro e de galinha gorda. Faz-se cozinhar com as especiarias conhecidas (habituais). A parte, uma berinjela, inteira e pelada, é cozida em água salgada, e depois escorrida e enxuta. Quando a carne, e as hortaliças, estiverem quase cozidas se procede a cozedura do cuscuz como indicado precedentemente. Depois se coloca o cuscuz em um prato e, usando as pontas dos dedos, se esfrega suavemente com manteiga de nozes morna. Pilar o ásaro e a canela, no almofariz, um pouco amassado. Dispõem-se as carnes e a verdura, e se pulveriza de canela e ásaro. E se consome, como Deus desejar.

 

Ghassanide

Necessita-se extrair da carne e das verduras cozidas o caldo. Filtrar o caldo eliminando os ossos e qualquer outra coisa. Reserve-o numa panela. Depois coloque dentro o cuscuz. Deixe-o até absorver todo caldo. Coloque-o em um prato e sobre ele a carne e as verduras. Então se come. Este prato é chamado o “ghassanide”.

Também se pode fazer este cuscuz com um caldo de carne cozida com vinagre e açafrão, segundo as receitas do “tharid”; e as suas verduras serão berinjela e abobrinha. Trata-se certamente de uma receita que usa o cuscuz pré-cozido.

O “tharid” é um prato tradicional árabe, o preferido do profeta Muhammad. A base da receita é grão-de-bico, temperos como o cominho, pimenta e açafrão entre muitos outros, carne de carneiro, e tudo é cozido com muito caldo que é derramado sobre fatias de pão, ainda ovos complementam a receita.

 

RAUL LODY

BrBdeB

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