Tabuleiro do acarajé: um lugar de ofício e de pertencimento

É clássico, no imaginário das comidas de rua, destacar o tabuleiro do acarajé, um lugar que reúne diferentes comidas com histórias e significados que se conectam para formar um único texto simbólico e visual, de sabor e de pertencimento a tantas tradições e memórias ancestrais de matrizes africanas.

Como é notório, a comida não é só para ser comida, e ela existe para além de alimentar e de nutrir o corpo; pois a comida traz representações e diálogos entre a pessoa e a sua história, a sua tradição; e, dessa maneira, ela integra um vasto e rico repertório de identidades.

Cada comida pode afirmar sabedoria, vínculo com bases etnoculturais; definir territórios e lugares sociais; e tudo isso certamente se integram ao entendimento de sabor, de formação de paladar e construção de cada receita.

Os muitos patrimônios alimentares da diáspora africana no Brasil são marcados pelos preparos culinários especialmente feitos à base do azeite de dendê, um sabor que aproxima simbolicamente a Costa Ocidental e a Costa Austral do continente africano com a Costa do Brasil.

Assim, comer comidas com azeite de dendê é também comer a África, e este entendimento de geofagia não é apenas direcionado para a alimentação do corpo, porém para alimentar principalmente um sentimento que toca na emoção de pertencimento, que traz as matrizes etnoculturais africanas, que traz a religiosidade. E a comida manifesta concretamente um elo com o sagrado, e que traz muitas representações e significados da natureza que são vividos e preservados, especialmente nas comunidades dos terreiros de candomblé.

Estes acervos construtores de imaginários e de muitas representações de cardápios, de receitas, estão também simbolicamente representados no tabuleiro, no tabuleiro da baiana de acarajé, um lugar consagrado da nossa afrobrasilidade.

No tradicional tabuleiro da baiana, também popularmente conhecido como tabuleiro de acarajé, está: o abará; o molho de pimenta grosso, muitas vezes chamado de molho Nagô; a cocada branca e a preta; o bolinho de estudante; o doce de tamarindo; e alguns complementos como o camarão defumado e refogado no dendê, o vatapá de recheio, que é diferente do vatapá de mesa; e o acarajé.

Por ser um lugar considerado sagrado para a maioria das baianas de acarajé, o tabuleiro da baiana é um lugar que agrega rituais que se integram ao seu ofício, e traz profundas correlações com os orixás, com os inquices, e com os voduns.

Assim, fazem parte do tabuleiro algumas folhas que têm significados sagrados, a figa, as medalhinhas de alguns santos da devoção, para então compor com as diferentes comidas. E ainda, antes das vendas, as baianas de acarajé preparam o chão em que estará o tabuleiro, e frita 3 ou 7 pequenos acarajés que serão oferecidos as primeiras crianças que aparecerem, ou então são despachados na rua. Agora, ela pode iniciar o seu ofício de fazer e vender comida no tabuleiro com os rituais agregados as comidas, ao ofício e o pertencimento ao sagrado, que após cumpridos, é o acarajé que contará, pelo sabor, a sua história de resistência.

 

Bola de fogo

Há também no imaginário do acarajé uma forte correlação com a cerimônia do ajerê de Xangô, que é um momento ritual culminante nas festas dedicadas a este orixá, geralmente no mês de junho, quando numa panela de barro arredondada são colocadas iscas de algodão embebidas no azeite de dendê e ateadas ao fogo, e estas iscas fumegantes são chamadas de acará.

Assim, o orixá Xangô e o orixá Iansã se nutrem desse alimento vivo no fogo, que é uma alimentação ritual agregada ao itã de que Xangô bota fogo pela boca; com isso, há uma forte correlação do acará com acarajé.

Contudo, o significado de acarajé não é bola de fogo, o nome acarajé provém de duas palavras em língua iorubá, uma significando pão ou bolo que é “acará”, e “jé” que vem do verbo comer, então acarajé é pão ou bolo de comer.

Sem dúvida, este alimento tão popular e tão presente nas tradições afro-diaspóricas amplia-se em muitos outros significados que buscam conexões, e novos significados dentro das múltiplas relações sociais e religiosas.

Também, outra grande cerimônia religiosa e pública realizada nos terreiros de candomblé é o acarajé de Iansã, quando o orixá distribui acarajés para todos os presentes na festa. Algumas cerimônias rememoram o ofício das baianas de acarajé, quando o orixá, com um tabuleiro, irá distribuir os seus acarajés.

O ofício das baianas de acarajé, e tudo a ele integrado, é marcado pela presença do orixá Iansã, que segundo alguns itãs, foi o orixá que ensinou a mulher a fazer acarajé e a comercializá-lo, para assim a mulher ter um ofício, e com isso autonomia, um modo de fortalecer o papel social da mulher africana na afro-diáspora.

Por tudo isso, o acarajé ganha um sentido dinâmico, e sempre renovado, de um verdadeiro emblema das matrizes africanas, e de uma imediata conexão com o continente africano.

E assim, entendemos o acarajé numa relação ampliada entre o ofício cotidiano da comida de rua, quando geralmente a mulher cumpre o seu ofício de fazer a massa e fritar o acarajé, com as muitas e diferentes representações que esta comida se vincula no entendimento do que é feminino, mitologicamente relacionado ao orixá Iansã ou Oiá, que é lembrada nas muitas tradições orais – itãs – como uma mulher valente e intempestiva, uma mulher que é dona da sua própria história.

 

 

RAUL LODY

BrBdeB

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