Para celebrar os 190 anos da Revolta dos Malês na Bahia.
Sabemos que a comida é um retrato de questões sociais, ambientais e econômicas, é por isso que cada prato traz uma história, uma marca e uma singularidade. E assim, ele integra tantos os ambientes da identidade quanto da ancestralidade.
Trago hoje o tão celebrado arroz de Hauçá, que é uma receita que nasce certamente na diáspora, pois são muitos os povos e as civilizações africanas que chegam na Bahia à época da colonização. Desta maneira, a comida traz e revela as possibilidades dos preparos culinários para as populações que chegam em condição escrava.
O arroz de Hauçá, numa visão ampliada e civilizatória, traz grandes memórias e correlações com cuscuz do Magrebe, aquele que é feito e consumido na África do Norte, na região mediterrânea, onde a sua base é especialmente a sêmola do trigo duro; receitas também a base de farinha de arroz, de painço, de milheto, entre tantos.
É importante ressaltar que esta área do continente africano, o grande Magrebe, reúne um amplo contingente de muçulmanos, aqueles que seguem a Lei Islâmica do Alcorão.
E o cuscuz ganha também a diáspora, adapta os seus ingredientes e, certamente, os seus significados sociais e religiosos. O arroz de Hauçá, no seu contexto social e histórico, interpreta, dentro das possibilidades, o modelo do cuscuz Magrebe, ou seja, sobre uma base de massa cozida é colocado um molho de diferentes ingredientes.
No caso do arroz de Hauçá, a sua base culinária é o arroz “quebradinho”, o arroz mais popular, mais possível de ser adquirido economicamente. Este arroz, no seu preparo, deve ser muito cozido; e em algumas receitas tradicionais deste prato, ainda, vê-se o acréscimo de um pouco de fubá de arroz, para aumentar a consistência e a firmeza deste prato.
O molho utilizado neste prato é de carne seca, normalmente carne salgada do gado vacum, visto que os adeptos do Islã não comem carne de porco e nenhum dos seus produtos. Neste ambiente histórico, era a carne possível, e a mais barata à época. Também, o molho é feito com azeite de dendê e as pimentas frescas disponíveis.
Os relatos dizem que o arroz de Hauçá era servido em um prato único, redondo, centralizado, em relação as pessoas que iam consumi-lo, assim cada comensal estará diante de uma porção, e com as pontas dos dedos da mão direita, polegar, indicador e médio, retira-se cada porção que vai a boca; aliás como se faz no consumo social e tradicional do cuscuz Magrebe.

Certamente, esta receita de arroz de Haúça, tão básica, e muito integrada ao seu ambiente histórico, social e econômico, de um Brasil em condição escrava que reúne diferentes populações do continente africano, mostra a resistência e a tentativa de afirmar algum tipo de identidade pela comida, de marcar uma identidade que está distante, do outro lado do Atlântico.
Assim, as relações funcionais do prato se integram as memórias mais antigas e fundamentais do cuscuz, uma receita extremamente socializadora e promotora do cultivo do pertencimento aos povos Berberes islamizados.
Nos contextos atuais, no mercado do consumo de comidas, especialmente nos restaurantes, muitas vezes vê-se a tentativa de interpretar receitas patrimoniais num modelo gastronômico da moda.
Assim, quando é acrescentado à receita original o leite de coco no arroz de Haúça, juntamente com camarões; sem dúvida, é apenas uma opção gastronômica, é apenas um prato idealizado para o consumo comercial nos restaurantes, mas sem compromisso com as questões identitárias deste prato.
Nas receitas reinventadas e adaptadas, quando muitas querem afirmar originalidade, e compromissos históricos etno-africanos, deve-se avaliar cuidadosamente algo assim; pois nos contextos essencialmente voltados ao consumo alimentar, pode-se integrar as idealizações do “típico”, da comida típica, que nem sempre são reais.
Então, retomo este texto-homenagem para tantas populações afro-muçulmanas que vão muito além dos Hauçá, e outros povos islâmicos genericamente chamados na cidade do São Salvador de Malês, especialmente pelos próprios africanos iorubas, que havia em grande número nesta época, meados do século XIX na Bahia.
E com este prato tão significativo, e emblemático, de uma trajetória civilizatória, histórica, e verdadeira patrimonial afro-baiana, louvo esta receita de resistente e de memória. Louvo também a grande sabedoria tradicional que é transmitida nas cozinhas, nas feiras, nos mercados; e nos terreiros de candomblé que marcam muitos lugares sociais e trazem tantas referências de pessoas, de sociedades e de culturas.
Assim, com este meu artigo, eu quero marcar os 190 anos da Revolta dos Malês na cidade do São Salvador, que reuniu grande contingente de homens e mulheres adeptos da Lei islâmica; e que certamente eram muito identificados com esta receita que está na cultura alimentar da Bahia; e desse modo reatar os laços, e fazer as conexões com suas bases mais distantes do continente africano.
RAUL LODY
