São muitos os lugares destinados para comer e beber numa região. E dada um apresenta seu estilo, tendência, e sua maneira peculiar, singular, na relação entre o lugar, a comida e o serviço à mesa.
E hoje, com o crescente processo de valorização e de glamorização das receitas e dos cardápios, nascem novos e diferentes aspectos comerciais e sociais que marcam o ato imemorial de comer e de beber. Tudo isso chega na ideologia de uma construção de identidade e de proposta que o mercado da comida e da bebida quer comercializar.
Os muitos e diferentes lugares para comer, e viver a comida, também afirmam identidades ritualizadas do que se entende por “viver à mesa”, e nela manifestar sociabilidades e comensalidade. Nestes contextos, eu quero trazer dois estudos de caso, um francês que é o bistrô, e o outro de base ibérica, que para nós brasileiros é muito mais lusitano, que é a casa de pasto.
Em ambos os casos vigoram tendências de cardápios diários e mutáveis, geralmente informados em quadros-negros com descritivos à giz. Esta tradicional maneira de informar o que há para comer no dia é uma característica de um estilo de produção culinária, com o tão consagrado “prato do dia”.
E o que é o prato do dia? Ele é uma oferta gastronômica que nasce de um conjunto de possibilidades, de escolhas, que, sem dúvida, apontam para as oportunidades de ingredientes que se relacionam com a sazonalidade agrícola; com as ofertas nos açougues, nas peixarias e noutros locais de venda de alimentos; para assim, combinadamente, proporcionarem a organização dos pratos e dos cardápios.
E certamente, neste conjunto de fatores, o fator econômico é fundamental para confirmar as escolhas, ou mesmo para orientar as escolhas dos cardápios cotidianos. Tudo isso porque há também uma forte tendência de preservar preços das refeições numa base mais popular e certamente mais democrática à mesa.
Estas características fazem destes lugares de comer e de beber, lugares com muitas opções de refeições mais em conta, mais baratas; e ainda nas ofertas de quantidades mais generosas. Comer mais barato e comer fartamente comidas com identidade “caseira”, isso afirma os ideais dominantes do comensal.
Lugares para se comer barato e com a fartura desejada da boa comida, com um certo sentido de comida do dia a dia, de comida feita em casa, trazem elementos de afetividade. Também posso acrescentar que a identidade do bistrô e da casa de pasto como lugares para se comer mais rápido; geralmente com uma frequência tradicional de trabalhadores da região.
Na construção e na identificação destes lugares de comer e de beber está a gestão dos estabelecimentos, onde, quase sempre, vive-se uma organização familiar que mantêm valores hierarquizados das relações domésticas, e de um entendimento de funções nas cozinhas e nos ambientes das refeições orientadas pelo gênero e pela faixa etária.
Assim, o bistrô francês e a casa de pasto ibérica, aqui enfaticamente lusitanas, mostram um certo prolongamento da cozinha da casa e dos saberes acumulados das receitas familiares. Essas receitas muitas vezes traduzem receitas regionais, receitas autorais familiares, e receitas que marcam ciclos festivos, e isso possibilita experiências memoriais dos que fazem essas cozinhas e dos que delas se alimentam.
Destaco, também, que estes lugares estão marcados por suas identidades culinárias e ritualidades do fazer e do servir. Contudo, estão convivendo com as tendências globalizadas dos mercados crescentes da conhecida gourmetização. Entretanto, esta tendência da gourmetização é localizada em restaurantes que estão num circuito mais turístico das cidades, e que possam trazer pratos considerados como “típicos”. Ainda, essa tal gourmetização se torna visível na transformação da estética dos pratos de comida, nas quantidades oferecidas de comidas, na organização funcional das mesas e dos balcões.
Parece que estas tendências querem se igualarem aos restaurantes da moda, numa certa busca por semelhança com os restaurantes idealizados, e que seguem com fidelidade essa verdadeira onda das estrelas culinárias.

Contudo, nessas tendências que no momento se incluem no rótulo bistronomia, há um largo distanciamento do que é mais identitário, e verdadeiramente culinário na construção dos patrimônios alimentares, e que são preservados tanto no bistrô quanto na casa de pasto.
Memórias familiares me trazem os almoços das Casas de Pasto, relatos de meu pai que descrevia (anos 1940), por observação, o uso da cerveja preta enquanto uma complementação alimentar. Bem, beber cerveja, aliás, um hábito diria até louvável, o que causou espécie era o uso da cerveja misturada a sopa; geralmente chamada sopa de entulho, herdeira de um ensopado ou cozido do dia anterior; pois, certamente a cozinha nasce e se desenvolve ao sabor das oportunidades, das reinvenções de partes de outras comidas.
O reaproveitamento culinário é o verdadeiramente grande chefe que sempre orientou as donas de casa, as cozinheiras e cozinheiros; os vendedores ambulantes de comida; os restaurantes; e aí, novamente, volta-se ao espaço popular híbrido que está entre o botequim e o armazém, no exemplo da Casa de Pasto.
Mesas de tampo de mármore, estrutura de madeira, pés fundidos de ferro, dão um sentido estético ao uso fácil, de rápida limpeza, um pano molhado sobre o mármore e pronto. Lá se vão às migalhas de pão, pedaços de verdura, molhos transbordantes.
Ainda, o valor nutricional da cerveja preta para “fortalecer” os alimentos como um componente que enriqueceria a comida; pois os principais usuários da Casa de Pasto eram trabalhadores braçais, que exigiam dietas mais consistentes.
Então, aí, a estimada carne bovina, o feijão-preto, o arroz, a farinha de mandioca; os legumes para engrossar sabores, e principalmente o pão, para marcar os imaginários remotos, antigos, de que refeição sem pão não é refeição. É o sentido geral de que o pão mata a fome. De que o pão é o alimento do corpo e do espírito. Certamente os pedaços de pão misturados na sopa, aliás como é normal e tradicional, para aumentar a consistência do prato.
Ainda, nos relatos memoriais, dizia meu pai que os frequentadores, predominantemente, eram senhores portugueses que de uma certa maneira, com essas refeições, relembravam alguns pratos tradicionais de além-mar, diria, que traziam um desejo da “açorda”, prato mole a base de pão e temperos, um tipo de sopa grossa, diria até um possível ancestral do vatapá. Refiro-me a açorda lisboeta, mais consistente, verdadeiramente fundadora de muitos dos nossos pratos tradicionais, diria também dos pirões, das papas entre tantos.
Assim, sem dúvida, há uma busca e uma retomada valorativa por cozinhas autorais e familiares que estão integradas ao terroir, e que são reveladoras das muitas maneiras de interpretar e de trazer os sabores das memórias à mesa.
Raul Lody