Setembro é tempo de quiabos

 

“Quem come quiabo não pega feitiço”

(Tradição oral ioruba)

 

O quiabo é uma malvácea da África, que é conhecido como: nafé, quigombó, gombô e quimbombô; entre outras maneiras de chamar essa leguminosa que traz antigas memórias de ancestrais e de deuses. E que seus usos se ampliaram, abrasileiraram-se nas festas, com o gosto e a estética do tão celebrado caruru.

O quiabo está presente nas muitas tradições de culinárias ritualizadas no âmbito dos cardápios afro-diaspóricos que têm no quiabo um verdadeiro protagonismo culinário. Esta leguminosa está integrada aos pratos votivos de orixás, de voduns e de inquices, e segue diferentes preparos na cozinha artesanal e sagrada das comunidades de terreiros; ou mesmo nas casas dos que têm uma devoção, que têm uma “obrigação” familiar”, de fundamento ritual religioso de servir o caruru.

Outros pratos rituais das cozinhas sagradas dos terreiros, feitos à base de quiabo, são o amalá e o beguiri, ambos são comidas dedicadas ao orixá Xangô, sendo que o amalá é de ocorrência geral na maioria dos terrenos do Brasil, especialmente nos terreiros de candomblé da Bahia; e o beguiri é uma comida tradicionalmente integrada ao cardápio do xangô pernambucano.

Diga-se que, o entendimento do amalá afro-diaspórico tem uma base de quiabos, camarões secos e defumados, azeite de dendê; e pode ter alguns acrescidos de rabada de boi; mas nas tradições africanas, especialmente ioruba, o amalá é uma comida feita com inhame, muito pildado, servido como uma massa compacta para o orixá Xangô.
Nas tradições afro-baianas, também há o oferecimento do caruru de Santa Bárbara, que une devoção à santa que representa, no imaginário religioso dos terreiros, o orixá iansã, uma das 3 mulheres de Xangô.

Este caruru, também ritualizado, tem no seu oferecimento, para o orixá e para as pessoas, o acréscimo do acarajé, uma comida marcante deste orixá profundamente integrado ao entendimento do gênero feminino.

Ainda, nesses usos culinários, um destaque especial para o tão celebrado molho Nagô, que na sua receita tradicional inclui quiabos, camarões secos defumados, entre outros ingredientes deste preparo tão importante que aguça os sabores de muitas comidas, inclusive do acarajé e do abará.

Contudo, o maior consumo de quiabos nas tradições afro-diaspóricas acontece por ocasião das festas de setembro, nas muitas maneias de trazer as comidas de celebração para o pagamento de promessas, e, assim, preparam-se e se oferecem os carurus.

Muitos destes carurus são anunciados com a quantidade de quiabos que serão utilizados no preparo da comida. E é comum se ouvir dizer: “Este é um caruru preparado com 1000 quiabos”; entre outras informações que vão anunciar a dimensão da comida, que é um verdadeiro banquete sagrado que marca o mês de setembro, um tempo de festa.

Os carurus podem ser oferecidos nas feiras, nos mercados, e em diferentes locais públicos, numa grande realização de comensalidade coletiva, como também é tradicional ser realizado nas casas, como uma festa familiar para o cumprimento de promessas.

As festas, na intimidade das casas ou dos barracões dos terreiros, são comumente e afetivamente chamados de: Caruru dos Meninos, Caruru dos Ibejis, Caruru do Mabaços, Caruru de Dois-Dois ou simplesmente caruru.

Tudo no caruru nasce de um entendimento que é o de agradar, agradecer, chamar, celebrar com as crianças; numa mistura entre santo popular totalmente apropriado e recriado na fé com os orixás gêmeos, infantis e patronais, que são os Ibejis, verdadeiros guardiões das casas, das famílias, das cidades do povo ioruba.

O Caruru é um prato tradicional da cozinha afro feito de quiabos, camarões secos, cebola e azeite de dendê; e é também uma maneira de chamar um cardápio ampliado – o caruru – que é a inclusão de outras comidas como: vatapá, xinxim de galinha, acarajé, abará, efó, feijão de azeite, acaçá branco e vermelho, ebô; e complementos como doboru, pipoca, rolete-de-cana, rapadura; e bebidas como: aluá de milho, vinho, cerveja; e ainda doces artesanais, como diferentes tipos de cocadas.

O caruru ritual acontece pelo seu oferecimento a sete meninos, que devem comer juntos na mesma gamela de madeira ou numa bacia, onde esta comida de quiabo deve estar recoberta de farofa de dendê, ovos cozidos, jerimum, batata-doce, entre demais complementos. Este ritual é o de alimentar os santos, e nas dimensões de sagrado de matriz africana os orixás, vive-se um importante momento de devoção nesta festa do comer.

De maneira livre, os meninos comem com as mãos, sob o olhar sincero e devocional dos que participam da festa, e creem que os santos, Cosme e Damião, e os orixás, os ibejis; também outro como Alabá; comerão pela boca destas crianças. Desse modo, a fome de quiabos é saciada, uma fome inicialmente que nasce no entendimento de sagrado.
A gamela só é retirada após o repasto ser consumido, quando um verdadeiro banho de “baba” de quiabo, e de dendê, recobrem os meninos que ali representam santos e orixás, saem satisfeitos por terem comido muito. Agora, depois deles estarem bem alimentados, pode-se servir o caruru, e demais pratos de azeite, para os participantes da festa.

E assim, continua a festa sagrada por meio das comidas e das bebidas, nas melhores interações que são realizadas nesse ambiente, onde o sentimento devocional marca o comportamento dos que participam do caruru. Ainda, um bom samba de roda, e outras expressões de música, de canto e de dança, fazem um entendimento da festa, que traz um sagrado repleto de humanidade.

Com tudo isso, sem dúvida, traz-se a África à boca, e, traz-se ao corpo a comida sagrada, pois tudo se une simbolicamente no quiabo. Este ingrediente das mesas cotidianas de muitas casas, restaurantes, bancas de feiras, mercados, terreiros, que é também base para outros pratos como a quiabada.

 

Setembro é tempo de quiabos
Foto Jorge Sabino

 

Apesar do caruru ser um prato que ficou consagrado com o quiabo, nas antigas receitas afro-baianas, via-se também o caruru feito de folhas como: bredo, mostarda, vinagreira, além de outras folhas verdes; apresentando-se, dessa maneira como um processo culinário de preparar verduras refogadas no azeite; porém o caruru de quiabo é o prato principal das festas de Cosme. Ainda, há o costume de adicionar nas panelas alguns quiabos inteiros, para indicar quem se responsabilizará pelo próximo caruru. Assim, quem receber o quiabo inteiro no prato será o indicado por Cosme para oferecer o próximo caruru, para fazer a “obrigação”, pois Cosme e Damião exigem um farto caruru untado com muito dendê. Geralmente quem tem filhos gêmeos assume a obrigação e a devoção de fazer caruru.

Outro fato é que o quiabo representa no imaginário afro um sentido fálico, e isso se fortalece nos rituais de fertilidade representados pelo nascimento de crianças, e as mulheres que querem ter filhos normalmente recorrem a Cosme, aos Ibejis, e prometem quiabos, oferecem o caruru. O caruru é considerado uma comida de vida, de união sagrada entre a mãe e o filho, e entre os santos e os orixás.

Tradicionalmente cabe a mulher fazer a comida em âmbito afrodescendente, e isso expõe também a sabedoria feminina, e traz o sentimento da maternidade. É a mãe que faz a comida para o filho.

Certamente o caruru, essa festa da comilança, que começa em setembro, estende-se por outros meses, e implica em muito quiabo, muito dendê, muita vontade partilhada de celebrar ritualmente os santos, Cosme e Damião, e orixás, os Ibejis, que compartilham de um mesmo entendimento de fé e de festa.

Comer caruru é uma experiência que deve ser vivida de corpo inteiro. É necessário sentir o gosto do dendê além da boca; o dendê que toca a pele, o quiabo que enche a mão, que se junta num bolo com a farofa; mistura-se pipoca, rolete-de-cana, e culmina tudo isso num gole generoso de aluá.

O caruru invade o corpo, mas invade principalmente o espírito, e assume um conceito de fartura na sua mais plena realização e experiência socializadora e sagrada.

 

 

RAUL LODY

BrBdeB

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