Em busca da caça perdida

O homem no seu papel imemorial de caçador, é aquele que sustenta a casa. E por isto é merecedor de respeito e de reverências quase divinas. Embora este lugar social esteja em forte mudança atualmente, ainda vigora um pensamento machista sobre o homem como provedor da comida.

E o alimento, a carne, é cerimonialmente posta sobre o fogo, a brasa, e se torna um motivo para reuniões, que traz ligações ancestres das celebrações de em torno do fogo, comemorar a boa caçada, quando os homens se reuniram para contar os seus feitos heroicos ao enfrentarem as savanas e as florestas. E este ritual milenar permanece neste personagem hierarquizado historicamente.

Ainda, o fogo é um elemento que simboliza o nascimento e a purificação. Assim, hoje, é a partir das fogueiras milenares que vigora o costume de promover reuniões em torno de churrasqueiras, ou seja, em torno do fogo.

As savanas foram substituídas pelos supermercados, e as caças foram substituídas por todo tipo de produto que se possa comprar no açougue, como linguiças, frango; e, em especial, a carne verde, fresca e sangrenta, seja de boi, de cabrito, de cordeiro, são lembranças imemoriais da sua época de caçador.

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Foto de Jorge Sabino sobre trabalho de Bansky

Também, há as churrascarias, verdadeiras catedrais das carnes, com seus rodízios. Uma exibição dos animais nas suas partes mais nobres, numa oferta barrocamente sedutora para a gula e para a vaidade. Comer muito, comer até a exaustão, demonstração da riqueza e do poder masculino, São lembranças remotas de banquetes romanos, que de tanta comilança era necessário que se provocasse o vômito nos convidados para que eles conseguissem, em seguida, comer mais, mais e mais.

Nas churrascarias é quase solene o desfile dos espetos repletos de carnes que circulam nos salões sob olhares atentos de espectadores famintos. Carnes frescas e vermelhas, bem passadas, ao ponto ou malpassadas. O cheiro invasor de gorduras de diferentes origens dá ao ambiente o sentimento litúrgico que anuncia os ritos da comilança.

A carne da caça mimeticamente se relaciona ao desejo antropofágico do homem. Os guerreiros comiam certas partes dos inimigos para adquiri seus poderes e qualidades, a alimentação como uma forma de transferir, através da ingestão, os valores simbólicos que conquistaram numa luta, numa vitória. E esse inimigo, homem ou animal, encarna um deus, um herói, um guerreiro, ele detém poderes sobre-humanos. Por exemplo, o boi é um animal de chifres, simbolicamente coroado, ancestralmente relacionado com o poder, com o prestígio, com o rei; e sua posse é um privilégio para os homens em cargos de mando.

Hoje, comer carne de boi nas grandes cidades é, antes de tudo, exibição de poder econômico. Carne, nem sempre de primeira, geralmente de segunda, porém não menos funcional dentro do ideal do bem alimentar-se.

As quantidades sempre são condicionantes de uma espécie de riqueza. E a quantidade de comida equivale a quantidade de valor material, ou seja, status social.

As reuniões em torno da carne consagram, não apenas, uma necessidade de convivência, mas também de expor um tipo de poder com diferentes significados, como o de concorrer com outros churrascos, sendo a designação churrasco nesse caso substitutivo de celebração.

Assim, desde as caças imemoriais, das carnes que simbolizam as conquistas de mitos, até as caças atuais nos supermercados e nos açougues, temos uma relação fundamental de um homem caçador que tem a oportunidade de recuperar o seu papel hierárquico perdido e levar para sua casa a caça perdida.

Raul Lody

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