O açúcar em Brillat Savarin

O açúcar é um dos temas mais marcantes, e fundamentais, nos estudos e nas interpretações da gastronomia, principalmente a partir da antropologia da alimentação nos seus mais diversos contextos históricos, étnicos, sociais, culturais e patrimoniais.

Sem dúvida, o açúcar é um grande elemento de revelação de temas referentes a uma verdadeira civilização, que organiza e determina muitos acervos gastronômicos, construções de ofícios na padaria, na confeitaria, e em muitas outras maneiras desempenhar trabalhos referentes a realização de doces nos mais diversos territórios, conforme os conhecimentos e a sabedoria tradicional de doceiras e doceiros; também, incluindo-se a indústria alimentar, e a produção de muitos produtos ultra processados que têm como elemento de atração o consumo o açúcar.

Assim, o doce acompanha os trajetos da história no Ocidente, e um dos mais notáveis e importantes intérpretes deste ingrediente tão formador e construtor de cardápios no mundo é Brillat Savarin, com a sua obra clássica Physiologie du goût – Fisiologia do Gosto –, que em 2025 celebra 200 anos da sua edição.

Savarin é um dos maiores construtores dos conceitos fundamentais para o entendimento e a determinação de bases teóricas sobre a gastronomia. É importante também trazer Savarin no seu tempo histórico, nos seus diversos contextos sociais, econômicos, ideológicos e culturais, para buscar entender as suas bases conceituais, inauguradora deste amplo e diverso processo de interpretação através da comida e da bebida, nestes ambientes inauguradores da gastronomia 200 anos atrás.

Savarin propõe na sua obra um conjunto de aforismos, que funcionam como verdadeiras sínteses de um pensamento construído a partir das suas muitas experiências alimentares na França, local base dos olhares e das experiências à mesa que foram vividas pelo autor.

Como um elemento sugestivo, e certamente conceitual da obra de Savarin, é este aforismo que passo a indicar, e que certamente ajusta-se ao caso das sobremesas, especialmente ao caso dos doces, e assim na composição alimentar e simbólica do açúcar. Então eis o aforismo:

“A descoberta de um novo manjar causa mais felicidade ao gênero humano que a descoberta de uma nova estrela”. (Savarin)
“No estado atual do conhecimento científico, entende-se por açúcar uma substância do seu paladar, cristalizável, capaz de converter pela fermentação, em ácido carbônico e em álcool”. (Savarin)

Antigamente entendia-se por açúcar o suco espesso e cristalizável da cana (Arundo sacchatifera).

Savarin recorre aos melhores argumentos da época, busca por fontes históricas de documentais deste ingrediente tão formador de hábitos alimentares não só no Oriente, ele busca enquanto procedência e fabricação inaugural, como também dos hábitos alimentares nas construções de ampla civilização o que se pode chamar de uma civilização do açúcar.

Particularmente no caso do Brasil, pode-se dizer que o açúcar é um ingrediente conformador das sociedades nas suas bases econômicas e culturais, assim também como simbólicas, de comidas e de bebidas que marcam muitos rituais de comensalidade, no cotidiano e especialmente nas festas, onde o doce, nas suas mais variadas concepções e estilos, é um fundamento das celebrações na construção de identidades alimentares.

Savarin olha e destaca para esta verdadeira diáspora da cana de açúcar do Oriente para o Ocidente, quando conformou muitos dos diversos sistemas alimentares; e certamente construiu diversos patrimônios alimentares atestadores de civilizações povos e culturas.

 

O Açúcar em Brillat Savarin
Foto Jorge Sabino

 

Ele destaca o Novo Mundo, e entende que as muitas colônias dos países europeus, especialmente nas América e no Caribe, são, sem dúvida, consagradamente marcado por uma verdadeira civilização do açúcar, como foi o caso do Brasil, que fez construir na nossa diversidade, na nossa biodiversidade, uma escolha histórica e marcante pelo que é doce, certamente a partir da expansão da cana de açúcar.

Porque o brasileiro tem uma forte atração, e reconhecimento, pelo que é doce, muito doce, e em muitos casos, notadamente na região Nordeste, o principal lugar dos engenhos de cana de açúcar. Sem dúvida, a construção dos paladares se dá por fortes processos sociais e econômicos em ambientes ecológicos e históricos.

As teorias inaugurais de Savarin, diga-se em pleno século 18, buscavam sempre associar contextos ecológicos, para assim fundamentar restrições de produção de ingredientes, não buscavam por entendimentos mais ampliados sobre comidas e bebidas, no caso doces, para localizar povos e sociedades e seus diferentes processos de alimentação. Há um sentimento dominante em Savarin que é de um certo pioneirismo na antropologia da alimentação.

“Açúcar europeu _ Durante muito tempo se acreditou que o calor dos trópicos necessário para a produção do açúcar, mas por volta de 1740, Margraff o descobriu em algumas plantas 10 zonas temperadas, entre outras a beterraba; e essa descoberta foi confirmada pelos estudos do professor Achard em Berlim.” (Savarin)

Novamente, as questões econômicas são orientadoras para uma fundamentação de produção, de distribuição e de consumo, de ingrediente, no caso o açúcar, além da cana-de-açúcar, a beterraba, entre outras opções em projetos de estudos e de descobertas para ampliar os mercados.

São muitas as buscas de Savarin, pelos mercados dos ingredientes, seus usos e e seus entendimentos, neste fundamental e pioneiro trabalho de olhar e de interpretar; e certamente de construir os conceitos da gastronomia.

Há uma complexidade que também orienta Savarin, para trazer a gastronomia nos seus mais diferentes ambientes sociais, sendo muito influenciado e marcado pela cozinha francesa, que faz a grande base alimentar, técnica, profissional, de consumo das comidas e das bebidas nas casas, em outros lugares, e ele relaciona sempre o que é produzido e servido à mesa.

Certamente, todos esses repertórios gastronômicos nascem das experiências Savarin à mesa, nas opções dos cardápios, das descobertas de novas comidas e bebidas, num entendimento também associado ao seu perfil socioeconômico da burguesia.

É ainda muito valorativo o que traz Savarin sobre a cozinha francesa, que busca nessa cozinha as melhores referências para torná-la, então, um exemplo, um caso especial do bem comer.

Posso então sugerir que Savarin recorre a uma verdadeira autoetnografia da alimentação, nos muitos ambientes por ele vividos e experimentados na França.

Os contextos sociais e políticos da época de Savarin marcam uma verdadeira construção do sentimento de uma França pelos franceses, onde a comida e outras representações dos processos ideológicos são referências de um legado pós-revolução francesa, nesse sentido também de democratizar o acesso a alimentação, não apenas de elitizar uma França à mesa.

No Início, o açúcar era uma especiaria, tão rara e tão valiosa que segundo registros o grama do açúcar equivalia ao grama do ouro. Ainda, com o olhar de Savarin, algumas questões referentes ao açúcar nos contextos históricos nos séculos 17 e 18.

“O açúcar entrou pelo mundo pelos laboratórios dos boticários, onde deve ter desempenhado um papel importante, pois para falar de alguém a quem faltasse algo de essencial, dizia se: é como um Boticário sem açúcar”. (Savarin)

Importante localizar o entendimento do açúcar enquanto um ingrediente que estava em larga descoberta, sendo crescentemente louvado, inclusive por questões terapêuticas, além de ter seu uso cada vez maior nas bebidas e nas comidas.

“Misturado ao vinho, fornece uma porção fortificante tão reconhecido que, em alguns países, molham-se nela os biscoitos servidos aos recém-casados na noite de núpcias, assim como na Pérsia, na mesma ocasião, lhes oferecem pés de Carneiro ao vinagre”. (Savarin)

E assim, Savarin trabalhava muitos usos e possibilidades gastronômicas do açúcar, exemplificava com cremes, manjares brancos, e muitas outras sobremesas, trazia receitas de uso das casas, das criações de cozinheiros, num amplo rico processo de proporcionar cardápios doces.

 

O Açúcar em Brillat Savarin
Foto Jorge Sabino

 

Também valoriza o açúcar nas suas muitas possibilidades, como para conservação de ingrediente, para ampliação de aromas e sabores, para descobertas dos paladares.

“Misturado as frutas e as flores, fornece as geleias, as marmeladas, as conservas, as gelatinas e os cândis, o que nos permite guardar o perfume dessas frutas e dessas flores muito tempo após a época que a natureza havia fixado para a sua duração”. (Savarin)

Savarin revela no seu entendimento, amplo e complexo, uma gastronomia enquanto teoria e conceito na construção dos seus contextos históricos, também afirmativos das identidades da França, já reconhecida pela sua comida.

Contudo, sendo autorreferente, Savarin quer trazer na sua obra uma ampliação de olhares e destaques para os ingredientes exóticos que estão conformando este campo por ele inaugurado que é o da gastronomia.

Ainda, com açúcar destaca:

“Enfim misturado ao álcool, o açúcar fornece os licores, inventados, como se sabe, para reanimar a velhice de Luís XVI, e que, por seu efeito energético sobre o palato e por seus aromas perfumados, formam aquele nec plus ultra das delícias do gosto”. (Savarin)

Ainda, neste olhar de descobertas, Savarin aponta para outros casos formativos de uma gastronomia que se amplia nas suas possibilidades de receitas, diga-se no mundo Ocidental, com o crescente aproveitamento do açúcar numa cozinha cada vez mais multicultural.

E assim diz Savarin:

Algumas pessoas o usam com umas carnes, às vezes com os legumes, e seguidamente com as frutas frescas. É indispensável no preparo das bebidas compostas em voga, como o ponche, o negus (espécie de quentão), o sillabub (leite batido com vinho, açúcar e canela), ou outras de origem exótica; e suas aplicações variam ao infinito, por que modificarem ao sabor dos povos e dos indivíduos”.

Nestas construções crescentes e diversas dos hábitos alimentares, das novas opções de comidas e de bebidas, fazem também a essencialidade da Fisiologia do Gosto, esta obra inaugural tão importante para um pensamento e um estudo sobre a comida e a alimentação, e assim conforma novas maneiras de comer e certamente de representar a cultura, a história e a sociedade.

 

 

Raul Lody

BrBdeB

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