Mineiridades à mesa

Trago das minhas memórias de criança uma família de mineiros, uma família de negros das Gerais, vizinha a nossa casa no Rio de Janeiro. E destas memórias trago, com destaque, para uma senhora chamada de “dona Neném”. Mãe de família numerosa e sempre na lida com os filhos, alguns meus colegas das brincadeiras de rua.

Essa matriarca negra marcava sua presença com o sorriso aberto, numa imagem que preservo e que é ainda aliada a de uma mulher que cozinhava muito e cujos perfumes das suas comidas invadiam o nosso quintal, sedução…

Se as memórias dos paladares têm suas construções no afeto e assim nas possibilidades de criar escolhas de comidas, hábitos alimentares, e é dessa maneira que eu posso declarar que iniciei meu encanto com as comidas de milho com dona Neném.

Criança, visitava com frequência a família vizinha e quase sempre, quase todos os dias, no final da tarde eu já aguardava aquele prato fundo, prato de sopa, com angu doce, uma delícia, um presente , muitas vezes ampliado com um pouco de canela em pó polvilhado, Eu comia tudo e ficava sonhando que no dia seguinte poder ter outro prato de angu feito por dona Neném.

O prato de louça branco do angu doce ao ser devolvido sempre estava com algum oferecimento: um bolinho de vagem, ou um pedaço de bolo de pão, entre tantas, porque é protocolo, entre vizinhos, ao devolver o prato que chegou com comida retornar com outra comida.

 

Mineiridades à mesa - Brasil Bom de Boca
Foto Jorge Sabino

 

O ritual do presente e o da alegria generosa do oferecimento, davam uma quase magia para aquele angu doce. Comida a qual atribuo e reconheço o tempero da afetividade.

Inicie-me também no cuscuz de milho ao molho de leite de coco, ou com queijo branco, de coalho, com ovo cozido, entre tantas maneiras de se acrescentar ingredientes, e que assim é similar ao cuscuz de sêmola do Magreb, por apresentar uma base que nasce da farinha e os molhos com diferentes ingredientes que mostrarão as receitas do dia-a-dia e das festas. Em geral as carnes de caprinos e ovinos se mostram para as grandes celebrações, além das frutas secas , legumes entre tantos, nas tradições do norte da África.

Ainda das minhas memórias das comidas de milho experimentadas no Rio de Janeiro em âmbito da casa está o do angu salgado ao molho de carne de rabada desfiada bem temperada, em especial com pimenta, cominho, sendo também outra delícia e de milho. Aliás este tipo de angu também integrava muitas vendas ambulantes na cidade como um tipo de comida rua.

As experiências da casa foram educativas na formação das minhas escolhas de sabores numa verdadeira construção de valorizar o milho e suas possibilidades alimentares. E integrado aos hábitos alimentares a feitura quase que diária do mingau de “Maizena ”, a base da fécula do milho, mingau sempre complementado com um generosa colher de manteiga que se fundia no branco da comida, servida quente, ou ainda com canela em pó pulverizada.

Agora nas “Gerais” as minhas maneiras de se comer o milho trazem referências de comidas do cotidiano, em cardápios que nascem do fubá de milho, em farinhas muito finas, com o fubá mimoso e que também pode ser fubá de milho branco. E assim conheço o bambá de couve e que com sua nominação possibilita conexões com os povos do macro grupo Bantu com as línguas predominantes no Brasil como Kimbundo e o Kikongo. Ainda trago o nome bambá ´para denominar a parte solida do azeite e dendê e que na Bahia se faz uma deliciosa farofa a “farofa de bambá”. E assim, sem dúvida há um forte sentimento que unem as cozinhas que têm a mão africana como um elemento de construção e de identidade e ainda nas técnicas de interpretar os ingredientes e assinar sabores na realização das comidas.

O bambá das Gerais apresentasse com variações, todas a partir do fubá mimoso e a receita mais comum é a com couve e então chama-se bambá´ de couve, e ainda temos e carne defumada, ou um embutido e o nesta nessa receita de bambá o melhor complemento é a tradicional costelinha de porco. O aspecto e a consistência assemelham-se do caldo verde, e assim creio haver algum diálogo nestas receitas a partir dos caldos mais engrossados, para se comer de colher.

E para se viver estes rituais culinários é preciso assim abrir a refeição com uma boa cachaça das Gerais, são muitas de excelência e na sequência ,com colher, comer o bambá de couve, A sobremesa de doce de goiaba com queijo, também mostra uma ampla e rica seleção de tipos de doces em pasta em calda, cristalizados e assim poder se encharcar de um barroco de sabores que faz a identidade das Gerais. É Minas Gerais à mesa e no prato, nos muitos imaginários ,das muitas cozinhas, dos estilos, das assinaturas autorais e dos territórios.

 

RAUL LODY

BrBdeB

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