O pão de Santo Antônio: tradição e fé partilhada

O pão de Santo Antônio: tradição e fé partilhada com o povo do candomblé na igreja de São Francisco, Salvador, Bahia.

Glorioso Santo Antônio
Com Deus-Menino nos braços
Fazei com que ele nos prenda
Com seus amorosos laços
(Benção)

Monumento do barroco no Brasil e no mundo, Patrimônio da Humanidade/UNESCO, igreja e convento de São Francisco, na cidade do Salvador Bahia representa um lugar de pertencimento para o povo da Bahia. Lugar de muitas devoções, de manifestações de religiosidade afro baiana, em destaque os rituais e tradições populares para cultuar Santo Antônio, um santo português.

Grande Antônio
Santo universal
Que amparais aflitos
Contra todo mal
(Hino 1)

Gentil e guerreiro são adjetivos de Antônio. Sua voz a favor dos pobres, seus dons de falar com a energia divina garantem-lhe títulos atribuídos pela Igreja e consagrados pelo povo. Sua característica de lutador, própria do franciscano convicto de seus papéis perante os homens e Deus, aproximou-o das populações carentes, que ouvem sua palavra enquanto alento social e espiritual.
Nos altares, Santo Antônio usava dragonas, chapéu e espada do exército brasileiro, à época imperial. Hoje ainda, no seu dia, 13 de junho, a imagem da Igreja de São Francisco recebe uma espada, símbolo do defensor, do que protege seus devotos. Na Bahia, recebe a patente de capitão, na fortaleza da Barra, Salvador. Em São Paulo, de coronel; de capitão em Goiás, na Paraíba e no Espírito Santo; de soldado e tenente-coronel no Rio de Janeiro; de capitão de cavalaria em Ouro Preto, Minas Gerais; de tenente no Recife, Pernambuco e até o título de vereador, em Igaraçu, Pernambuco.
A identificação do santo com os militares, traduzindo funções beligerantes, reforça o patronato de guerreiro e o aproxima, no caso afro-0brasileiro, de Ogum, orixá das armas, das ferramentas, ferreiro, defensor de escravos e seus descendentes.
Liberdade, trabalho, expressão religiosa e cultural conforme padrões étnicos. Ogum e Santo Antônio aproximam-se na devoção popular: se atuam ideologicamente de formas diferentes e em espaços próprios, a fé misturada incumbe-se de criar a imagem de Antônio-Ogum.
Assim, alguns movimentos sociais, originários de terreiros de candomblé na cidade do Salvador, reforçam o sincretismo, fazendo santos do catolicismo conviverem no pensamento do povo do santo – os adeptos das religiões afro-brasileiras.
As traduções do povo devoto fazem-se em estilos e em momentos diferenciados conforme apelos, sugestões, motivos, compreensões de um sagrado utilitarista, decorrente de necessidades imediatas de quem pede e crê.
Antônio é um santo querido por todos, disputado por Lisboa e Pádua a ponto de Leão XIIII proclamar que Antônio é il santo di tutto il mondo.
No Brasil, mais de 220 freguesias têm seu nome. É enorme a incidência de Antônio enquanto nome próprio. São muitas e diversas as maneiras de homenagear e perpetuar Antônio no meio do povo.

 

Em santas missões povos converteu
Vossa língua santa
Que não pereceu
(Hino 1)

 

Broa de Santo Antônio - Brasil Bom de Boca
Foto Jorge Sabino

 

A imponente Igreja de São Francisco recebe o povo em seu contexto barroco e convida ao convívio com espetaculares imagens da arte e da invenção do homem voltadas para a fé católica.
Lá, Santo Antônio, em altar do lado direito da nave central, altar de São Francisco de Assis, recebe visitas, orações, súplicas e agradecimentos diários; na terça-feira, entretanto, dia dedicado a Santo Antônio, o movimento é maior, iniciando-se às 6h, com missa, que se repete às 7h; às 15h e às 15.30h acontece à bênção simples, sem missa; às 16h, outra missa; às 17h outra bênção, do Santíssimo Sacramento e bênção da relíquia; ás 18h, finalmente, a missa mais esperada e frequentada, chamada missa da bênção ou apenas bênção.
É ritual que lota a igreja, que comove visitantes, turistas, apreciadores de obras de arte.
A frequência da missa é um espelho de como a fé em Santo Antônio está viva no povo devoto, de diferentes partes da cidade, de não menos diferentes olhares perante o altar que é saudado oferecendo-se moedas, pães ou então cumprimentando o santo no desejo de tocar sua relíquia. Como se tocando a relíquia tocasse Antônio; assim, o contato físico com matérias, formatos e cores adquire essa vocação simbólica de fé.
A missa é amplamente participativa. Canta-se, batem-se palmas, e dela emana uma alegre energia que emociona e comove pelos muitos preitos perante o sagrado.
Os devotos de Antônio desejam certamente nessa missa semanal estreitar cada vez mais sua relação com o santo.
É um alívio para o espírito e um espetáculo de religiosidade essa missa-benção das terças-feiras, momento marcante na vida da cidade do Salvador, da Igreja de São Francisco e sobretudo de quem participa desse ritual religioso e social, pois Antônio permanece forte marco do culto à vida.

Glorioso Santo Antônio
Sobre vossos devotos lançai
Vossas bênçãos carinhosas
Do céu as graças nos daí
(Gloriosa)

O clímax da benção é o recebimento da água benta, criando diálogos entre o devoto, o santo e a Igreja; se a água é fonte imemorial da vida, da fertilidade, a água benta fala das graças, das benesses, da purificação, da relação física da fé.
Antônio olha, de seu altar dourado, para seus devotos, para o povo; o olhar piedoso do advogado, do protetor; a voz a favor daqueles que pedem, que vêm agradecer, depositar ofertas sobre seu altar.
A alegria dos devotos quando saem da missa dizendo tomei banho é sem dúvida um estilo de se sentir abençoado, por receber quantidade de água benta que lave realmente o corpo e o espírito.
A tradição dos franciscanos de aspergir água benta nos fiéis desenvolveu nestes últimos a convicção de que por um bom tempo estarão protegidos. Por isso é grande a multidão que, de mãos espalmadas, fazendo o sinal da cruz, recebe a graça da bênção, um hábito já arraigado na cidade do Salvador.
Como a água benta alimenta o espírito e a esperança, o pão alimenta aqueles que aguardam nas portas da Igreja de São Francisco. Se o pão é fartura, também é o alimento simbólico do cristão, o alimento do espírito.
Os pãezinhos de Santo Antônio, distribuídos aos milhares, no dia 13 de junho, são guardados em casa, na farinheira para que não falte o alimento do homem. Santo Antônio é, assim, proteção, fartura, garantia da própria vida. Antônio, simbolicamente, um alimento da fé e da esperança, é, por isso mesmo, senão o mais popular no Brasil, certamente um dos santos mais recorridos por todos os segmentos sociais, que lhe atribuem poder e capacidade de intervir junto a Deus.

Essa linda esperança
Envolta numa alma pia
Seja aceita lá no céu
Por Antônio e Maria
(Hino 1)

Após a missa, finalizada pela bênção com relíquia de Santo Antônio, água benta aspergida no corpo, vai-se viver outra festa que, a partir do entorno da igreja, ganha ladeiras, praças, bares, restaurantes, passando pelas vendas das esquinas com tabuleiros de acarajé, abará, cocada, bolinhos de estudante, entre outras delícias para os olhos e para o paladar espiritualmente em êxtase.
Talvez pela fama de casamenteiro, muitas pessoas marcam seus encontros com amigos ou namorados após a missa de Santo Antônio, notadamente a das terças-feiras, a das 18h. Já devidamente abençoados, os casais e os grupos vão beber cravinho, cerveja, protegidos por noites estreladas e tocados pela brisa da baía de Todos os Santos.
O grande encontro das terças-feiras ganhou notoriedade popular e é chamado de bênção, incluindo a bênção propriamente dita e todos os rituais sociais e lúdicos que se estabelecem noite adentro, além da Igreja de São Francisco.
Salvador veste-se de festa todas as terças-feiras, dia oficial de comemorar a vida.

Com afeto e ternura
Digo adeus por despedida
Ao glorioso Antônio
Nós ofertamos a alma e a vida
( Hino 1)

 

Broa de Santo Antônio - Brasil Bom de Boca
Foto Jorge Sabino

 

 

RAUL LODY

BrBdeB

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