Texto a partir da entrevista de Luis Domingos para Raul Lody, outubro/2008.
Este texto é uma homenagem a Maria de São Pedro na celebração dos 100 anos do seu restaurante na cidade do Salvador.
Há um sentimento dominante na entrevista de Luis Domingos, e é o da homenagem a mãe, trazendo memórias, unindo o saber fazer comida com a fé religiosa nos orixás, nos presentes a Iemanjá, na profunda relação com Xangô, orixá de Maria e a quem seu filho ocupa o Oiê _ cargo _ de oba no Ilê Axé Opô Afonjá.
A memória religiosa de Domingos é plena de histórias, de personagens, de festas aos orixás, de uma trajetória voltada a tradicional casa de Xangô, que em 2010 completam 100 anos de fundação pela Ialorixá Aninha, Obá Byí.
Inicialmente Domingos ocupou o cargo de Ossi Ojú Obá ao lado de Ojú Obá, Pierre Fatumbi Verger, que no terreiro era os olhos de Xangô.
Tudo começou com uma visita a Mãe Senhora, Ialorixá no Afonjá, e que reinou por um período repleto de reconhecimento pelo povo do santo e pelo povo da Bahia.
A criação da sociedade dos Obás é uma tradição implantada por Obá Byí buscando trazer diferentes segmentos da vida cultural, social, econômica, política da Bahia e representações das famílias, dos herdeiros do povo do santo: alabês, olossaim, ojés entre outros, fazendo do Afonjá um lugar de convivências com os costumes da Nação Kêtu, orientadora das memórias e dos rituais religiosos dos orixás e outros da Nação Grunci, especialmente representado por Iá que é lembrada nas festas de Iemanjá no terreiro.
Maria ligada ao mar, tinha obrigação anula de dar presentes para Iemanjá, relata Domingos. São lembranças de menino, vendo o saveiro repleto de flores, perfume, balaios entregue na gameleira, Itaparica. Domingos: continuo até hoje a repetir esse presente como faria a sua mãe, também filha de Iemanjá.
Relata ainda que o mar sempre acompanhou a vida e principalmente o trabalho da cozinheira Maria de São Pedro.
Inicialmente teve barraca de comida na Feira do 7, na região do porto do Salvador e aos sábados ia vender comida próximo, na feira de Águas de Menino. Vai para o antigo Mercado Modelo, num restaurante de nove mesas, sempre muito concorridas, repletas de gente da Bahia e turistas querendo provar o tempero de Maria. O Mercado Modelo teve um incêndio (1968) e a água do mar ajudou o trabalho dos bombeiros.
Luis destaca que o restaurante Maria de São Pedro foi o único salvo no prédio. Tudo foi recuperado, para Domingos foi Iemanjá que ajudou Maria e sua família.
Novos endereços até o lugar de hoje, ainda no mercado Modelo, onde diariamente Domingos relembra sua mãe no ofício da cozinha, na arte e na tradição de fazer comida baiana, comida de azeite que tanto identifica e revela essa África integrada na fé religiosa, nos orixás, no candomblé, nos santos da igreja e principalmente nas receitas e na preservação dos sabores, dos gostos, que dão sentidos e reconhecimentos a Maria de São Pedro e sua história na Bahia.
Maria experimentou desde a infância culturas e formas de traduzir matrizes africanas, e Luis Domingos relata a forte influência da sua avó materna, Dona Josefa Ialorixá da nação Jeje. No Recôncavo: Santo Amaro, Cachoeira, Muritiba, e São Felix há uma série de manifestações desse segmento da África ocidental, do Benin, com os Fon/Ewe, destacando-se tradicionais terreiros que preservam a mitologia dos voduns.
Maria que nasceu no dia de São Pedro, 29 de junho, daí o seu nome, e sua relação com Xangô, seu orixá.
A cozinha do Recôncavo é variada com pratos de dendê e com a tão conhecida maniçoba.
Cachoeira é famosa com esse prato que é feito com a maniva, folha da mandioca, muito tóxica, que é cozida por dois ou três dias, acrescentam-se carnes, temperos e principalmente a boa farinha de mandioca do Recôncavo.
Luis Domingos destaca a cozinha enquanto um lugar feminino, território da mulher e assim lembra as funções das iabassês _ mulheres responsáveis pelas comidas nos terreiros de candomblé, conhecedoras dos cardápios e receitas dos orixás.
Oxalá gosta de comida sem azeite, já Oiá ou Iansã gosta de acará, acarajé com fartura no dendê fervente, e dessa maneira o poder vai se afirmando no papel social e no conhecimento tradicional da mulher no âmbito da comida, pois, saber fazer comida é um lugar social muito importante nas casas, unindo temas sagrados dos deuses africanos e dos ancestrais.
Domingos sempre ao falar de sua mãe Maria, para os demais Maria de São Pedro, fala com muita emoção e certamente encontra no legado de Maria, da cozinha que ele comanda e preserva até hoje no conhecido restaurante Maria de São Pedro, no Mercado Modelo do Salvador, Bahia.(*)
Hoje, Domingos coordena uma equipe de 12 funcionários entre o salão, área pública do restaurante, e a cozinha, reunindo homens e mulheres.
Ele destaca o papel do homem na cozinha dizendo da notável criação masculina dos chefes do mundo e mesmo nos contextos tradicionais da cozinha baiana de matriz africana.
Veem-se hoje os baianos de acarajé realizando o mesmo ofício das baianas de acarajé e complementos como abará, cocada, doce de tamarindo, bolinho de estudante, entre demais delícias.
O conhecimento e a sabedoria culinária vão sendo ampliados com os homens que chegam para mostrarem suas habilidades para usar o dendê, os temperos e, principalmente, assinarem cada prato com o sabor e a memória do paladar, do gosto baiano.
Domingos afirma o cuidado e a manutenção das recitas, verdadeiros patrimônios que são de conhecimento da família, buscando na repetição de cada processo culinário uma homenagem cotidiana a Maria de São Pedro que tanto marcou a cozinha da Bahia, e cujo restaurante em 2008 completam 80 anos de temperos, odores e sabores baianos e seus muitos vínculos e contatos com a África.
Maria de São Pedro participava das Festas de largo, festas religiosas dos santos católicos, profundamente identificados com os orixás, tais como: Conceição da Praia _ Oxum; Santa Luzia também Oxum; Bonfim _ Oxalá, especialmente Oxalufã, 2 de fevereiro, dia de Iemanjá, celebração tradicional marcada pelas barracas de comida, pelo samba de roda, sendo lugar de celebração da religiosidade, de encontros, de sociabilidades.

As barracas de itinerantes, montadas próximas as igrejas, que concentravam os rituais de fé, procissões, missas, e comidas, muitas comidas.
Cardápios de feijoada, caruru, vatapá, moquecas; Maria tinha a sua barraca, cozinhava em casa e levava enormes panelas repletas de sabores para integrar com as outras cozinheiras esse amplo banquete de devoção e principalmente de festa, lembranças de festas nos terreiros, onde se come muito e bem, lembrando sempre a África pela boca.
As barracas das festas de Largo eram verdadeiras instalações com pinturas temáticas referentes às festas: sereias; Nossa Senhora da Conceição; Santa Bárbara; além dos caboclos, ancestrais que foram interpretados pelo povo do santo como ancestrais da terra; ainda cortinas e detalhes em chitão multicolorido, peças de barro contendo folhas para proteção: peregum, espada de São Jorge, São Gonçalinho, guiné, pinhão (roxo) entre outras, tudo acontecia em ambiente de festa e de profunda religiosidade à moda afro-baiana.
Para homenagear Maria, sua mãe, Domingos inclui no cardápio do restaurante o prato segredo de Maria que é uma mistura do feijão de azeite _ feijão fradinho, camarão seco, dendê, temperos e galinha, segundo a receita do xinxim, com dendê e outros ingredientes, tudo acompanhado da tão apreciada farofa amarela _ farinha de mandioca e dendê.
Sem dúvida, nesse prato emblemático o dendê impera com o azeite uma das mais notáveis marcas dos povos do outro lado do Atlântico na mesa baiana.
As comidas com dendê são conhecidas como comidas de azeite, e as demais com azeite de oliva poderão ser chamadas especialmente (alguns pratos) de azeite doce.
Há uma tradição no Salvador de comer comidas de azeite na sexta-feira, especialmente no calendário da Semana Santa, quando são tradicionais os almoços com vatapá, efó, caruru, feijão de azeite, moquecas entre outros.
Luis Domingos destaca a composição de alguns pratos condimentados como as moquecas de peixe e de camarão, o vatapá, com pratos sem tempero como o acaçá ou acaçá branco, feito de milho branco, onde o mungunza (é usado) como uma massa que é cozida envolta em folha de bananeira, como, aliás, é o mesmo processo de se fazer o abará.
Essa combinação, segundo Domingos, é o sabor da Bahia, uma mistura que é o resultado de uma cozinha antiga, milenar como a africana, e que no Brasil ganha novos acréscimos e co-forma assim a nossa mesa multicultural.
Ainda, com um bom acompanhamento para os pratos de azeite, Domingos destaca uma recita tradicional do arroz de Hauçá que é um arroz bem cozido, unido, e elite de coco, ainda um pouco de açúcar e um pouco de sal para apurar o sabor.
Nas receitas baianas veem-se algumas variações nas receitas de arroz de Hauçá, entre elas há uma coletada por Manoel Querino, na cidade do São Salvador no início do século XX:
“Cozido o arroz na água sem sal, mexe-se com a colher de madeira até que se torne delido, formando um só corpo e, em seguida adiciona-se um pouco de pó de arroz para assegura a consistência. Prepara-se, depois, o molho em que entram como ingredientes a pimenta malagueta, cebola e camarões, tudo ralada na pedra. Leva-se o molho ao fogo com azeite de cheiro e um pouco d’água, até que está se evapore. Como complemento ao arroz de Hauçá, o africano frigia pedaços de carne de charque que eram espalhados sobre o arroz juntamente com o molho”. (pg. 31/32)
O Restaurante Maria de São Pedro se afirma com as moquecas e principalmente na escolha dos ingredientes, e entre eles destaca-se o dendê, conhecido na mesa baiana como “azeite de cheiro” ou simplesmente azeite.

Domingos diz:
“Vou pessoalmente, todos os dias, na feira de São Joaquim para fazer compras”. Destaca o azeite que ele diz o melhor vindo de Valença, e adquire em latas de vinte litros. Ainda, o bom camarão bem escolhido, artesanal, seco com folha de aroeira, a farinha e mandioca, bem fina, típica do Recôncavo; pimentas, gengibre, amendoim, castanha de caju e tudo mais que as misturas exigem para celebrar o dourado dendê, o coco do oriente tão nosso, tão tropicalmente baiano, os pratos preferidos de Luis são as moquecas, nominadas tradicionalmente como: peixe de moqueca e camarão de moqueca, aliás, Luis revela que o bom camarão fresco é aquele que vem diretamente do mar, tem mais sabor, mais cheiro, é muito diferente do camarão de criatório, embora tenha maior durabilidade.
Contudo, o camarão do mar compõe melhor a moqueca, e concluí: “o gosto é outro”.
Assim, a comida está nos seus muitos sentidos e representações de sabores, de símbolos da cultura, da tradição ,da autoria culinária , marcando memórias e pertencimento.
RAUL LODY