Casa-Grande & Senzala – A comida, a fé, o trabalho e o cotidiano

Em dezembro de 2023, celebra-se os 90 anos da edição deste clássico de Gilberto Freyre. Um dos mais notáveis livros que relata de maneira direta e crua os muitos rituais sociais fundados nas experiências do cotidiano, onde se extraem as bases formadoras da nossa multiculturalidade.

Multiculturalidade que nasce das misturas de civilizações, dos contatos profundos entre o Ocidente e o Oriente, e dos processos de mundialização realizados pelas grandes navegações de Portugal, resultando na formação do que podemos chamar de brasileiros.

Gilberto olha de maneira preferencial para o Nordeste e, em especial, para Pernambuco, como um processo de observação complexa diante das muitas formas de manifestar identidade num ambiente marcado pelo açúcar.

Gilberto mistura, de maneira íntima, a sua história pessoal com a história da região, os testemunhos dos engenhos, das famílias patriarcais, do sagrado barroco e festivo nas casas e nas ruas numa expansão de fé diversa e plural. Tudo num cenário de tropicalidade, de matas, de litoral, e da invasora monocultura da cana-de-açúcar.

Essas maneiras de observar, ora enquanto protagonista da região e da sua família, ora interpretando os encontros e os confrontos da multietnicidade para o entendimento da diversidade de muitos ‘Brasis’, fazem de Gilberto um personagem destes muitos ambientes tropicais do Nordeste.

E para trazer o brasileiro em tanta diversidade, Gilberto busca nos sistemas alimentares, nos alimentos exóticos e de terroir, nas comidas, nas maneiras preferenciais de afirmar pluralidade, de afirmar gênero; de afirmar hierarquias sociais e religiosas; de manifestar estética, de realizar verdadeiros mergulhos nas nossas múltiplas relações sociais.

Os vários ofícios se misturam nas cozinhas, verdadeiros templos do poder da mulher, do mando da casa. São as comidas que orientam o cotidiano, que marcam as festas; que são servidas nas ruas, os ‘ganhos’; são os doces que reforçam as receitas ibéricas; as descobertas da mandioca, do orientalismo do coco, da orgia do açúcar.

Nesta diversidade, a vida social é contada com muitos detalhes que antes não se incluíam dentro de uma historiografia tradicionalmente épica e heroica.

‘Casa-Grande & Senzala’ transgrede a base da trilogia: índio, europeu e africano. E assim, vai muito além nas suas buscas pelas maneiras de manifestar multietnicidade, e mostrar na casa, na rua, nas festas, nos engenhos de açúcar, nos ofícios e nas expressões de fé, este brasileiro bi africano, que continua a ser Magrebe pelo seu lado ibérico, e a ser multi africano das Costa do Ocidente e da Costa do Oriente.

São muitas as histórias, todas conformadoras e identificadoras dos processos sociais, econômicos e religiosos, na constituição dos diferentes papéis sociais de homens e de mulheres. São múltiplas ações que relatam esta plural e complexa história do dia a dia que ‘Casa-Grande & Senzala’ quer mostrar dentro do confronto com as histórias comprometidas com o poder, com o que é consagrado, oficial, e idealmente épica e de fatos heroicos.

Roupas, móveis, utensílios diversos, receitas de bolos; orações para os Santos padroeiros; festas nas capelas e nas igrejas, procissões; as organizações dos engenhos de fazer açúcar; as modas, os hábitos alimentares; as muitas tendências e estilos de casas, de lugares, de feiras, de mercados, de maneira de viver nas cidades; os engenhos como argumentos e documentos que relatam a vida.

Do próprio Gilberto ouvi relatos nos quais ele relacionava profundamente as suas obras Sobrados e Mocambos e, enfaticamente, Nordeste, livro que traz os seus relatos pioneiros sobre ecologia, no ambiente da monocultura da cana-de-açúcar, com os seus primeiros sentimentos de preservação e de entendimento de natureza.

Também, os avanços sobre ecologia, numa perspectiva social e cultural, marcam interpretações pioneiras no ambiente da civilização do açúcar, tema profundamente abordado em ‘Casa-Grande & Senzala’. Assim, os cenários das casas, suas tipologias, suas ocupações funcionais e simbólicas, fazem os mais profundos relatos dos processos de uma inter civilização e de uma mundialização, onde o açúcar é um dos mais notáveis personagens.

Ainda, há em Gilberto uma busca por repertórios ampliados e diversos que mostrem os detalhes da vida cotidiana, da fé, do barroco, das muitas Áfricas, dos iberismos, e dos sentidos mundializados de ser lusitano à época de um Brasil do açúcar.

Destaque para uma evidente intencionalidade nos relatos etnográficos, virtualmente descritivos, que se ampliam em contextualizações históricas que trazem a vida interna, íntima, das casas, nos cenários mais sedutores dessas intimidades, e dos seus muitos papéis sociais.

Para Gilberto, a casa é o lugar, é o território, é o ambiente profundo de representar hierarquias, sexualidade, devoções religiosas, hábitos alimentares; maneiras de viver e maneiras de expressar individualidade; e nesta individualidade o que há de mais construtor nos papéis internos da vida privada.

Raul Lody

BrBdeB

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