Para comer Pernambuco

Uma homenagem ao antológico restaurante O Buraco de Otília

Como sabemos um lugar de comer não é apenas um lugar de comer. É, antes de tudo, um lugar profundamente ritualizado dentro das suas muitas relações, que são marcadas na identidade do cardápio, no serviço das comidas e das bebidas e no comensal.

Tudo para apreciação, inicialmente de sabores, depois para apreciação estética das comidas, e ainda numa espécie de imersão mágica com as ofertas de tudo que está ali disponível na mesa. E assim, este é o momento de trazer todos os sentidos e as emoções para o reconhecimento das memórias dos paladares.

À mesa vive-se experiências sensoriais e simbólicas que se misturam, como se misturam os temperos para alcançar os sabores, os encontros com os paladares, nos melhores rituais para se poder comer as comidas das memórias, as comidas afetivas; as comidas nos seus muitos significados.

Também, o ato imemorial de comer é um ato recorrente nas histórias pessoais do comensal; são as possibilidades alimentares oferecidas no ambiente, no território. A partir disto, eu trago o que se pode chamar de uma rica experiência de ter Pernambuco à boca. E esta experiência faz parte da construção dos saberes patrimoniais das cozinhas populares, que são fundamentais para manutenção das receitas, seus modos de fazer e de servir à mesa.
Dos anos 1970 à 1980, eu pude experimentar os melhores sabores pernambucanos que eram preparados, certamente, com toda a ritualidade para poder louvar cada ingrediente, e para auferir e possibilitar o reconhecimento de cada técnica culinária empregada na organização dos pratos e dos seus acompanhamentos.

 

O Buraco de Otília - Brasil Bom de Boca
Foto Jorge Sabino

 

As sobremesas, quase sempre guarnecidas de queijo, revelavam uma multietnicidade afirmativa do que é ibérico, do que é português e do que é do Oriente, no cravo e na canela para perfumar as frutas em calda, destacadamente a goiaba, a banana, a jaca, testemunhos dos doces muito doce, onde verdadeiramente se viva os engenhos à mesa.

Refiro-me ao antológico e patrimonial restaurante O Buraco de Otília, no Recife, na rua da Aurora, frontal ao rio Capibaribe. O Buraco de Otília, traz o nome dos lugares de comer populares de certas regiões de Portugal, o chamado “buraco”, um lugar funcional, onde o principal está na assinatura dos sabores.

Verdadeiramente, sobre isso, Otília assinava magistralmente o seu cardápio com o coco, com a cabidela, com o peixe, com o camarão; com o feijão pernambucano repleto de legumes; com a carne de sol com macaxeira cozida; com a farofa de jerimum bem molhadinha, e mais ainda se acrescentar manteiga de garrafa. As ofertas se ampliam no caldinho de feijão, nos doces das frutas da época; no queijo de coalho bem assado, derretido, com o mel de engenho; nas muitas experiências dos sabores memoriais.

Se a cozinha é a alma do lugar, um território quase secreto das receitas, certamente, Otília mantinha os melhores segredos de cada receita, que eram cerimonialmente realizadas na cozinha, lugar sagrado. Antes das comidas serem servidas, Otília provava de todas as panelas, para só então as comidas serem servidas no ambiente efervescente do restaurante.

 

O Buraco de Otília - Brasil Bom de Boca
Foto Jorge Sabino

 

Lembro-me de Otília, uma mulher de cabelos bem negros, com uma bata adequada ao seu ofício, larga e clara; e usava sempre um trancelim com medalhinhas e outros objetos de afeto que eram ali reunidos. Assim, ela circulava da cozinha às salas, pois o restaurante ocupava uma casa, originalmente de moradia e com a preservação das divisões dos seus cômodos originais, os quartos e as salas.

Estes ambientes estavam repletos de fotografias, enquadradas uma a uma, todas postas nas paredes como se fossem verdadeiros troféus da vida do restaurante. Otília comandava as suas garçonetes durante o almoço, numa interação de olhares, e assim tudo acontecia num ritmo acelerado para atender todas as mesas, num comando de matriarca que quer bem alimentar todos.

Sem dúvida, um ambiente feminino, assumidamente matriarcal, mulheres na cozinha, mulheres no serviço, mulheres nos rituais da alimentação. Nos serviços nas mesas eram exclusivamente mulheres que serviam no restaurante de Otília.

Lembro-me, ainda, o uso de batas cor-de-rosa, uma farda comum para aquelas que bem serviam e interagiam com os clientes. Aquelas que traziam cerimonialmente, cada prato, como um delicioso presente para o momento do melhor encontro entre a idealização da comida e a realidade da comida. Muita gente na hora do almoço, muitos desejosos pelas comidas à base de coco: peixe ao coco, camarão ao coco, sururu ao coco, lagosta ao coco. Os pedidos se multiplicavam, aceleravam-se os serviços.

E comandas viravam quase uma música que se ouvia continuadamente: “Saindo uma cabidela, mais arroz e feijão, outra cerveja, um caldinho; um café e a conta”. Tudo sempre bem acompanhado de uma boa cachaça. E eu gostava e uma mesa de dois lugares que era colada a janela e que dava para o Rio Capibaribe. E assim, ver água, os cenários da cidade do Recife, e sentir a brisa. Tudo isso provocava os meus sentidos e os meus sentimentos, que se ampliavam enquanto eu aguardava a comida e a bebida.

 

O Buraco de Otília - Brasil Bom de Boca
Foto Jorge Sabino

 

Ali acontecia um momento verdadeiramente mágico, parecia uma quase ficção da qual eu fazia parte naquele teatro culinário, de verdades, de possibilidades de poder comer Pernambuco. E eu comi, comi muito Pernambuco, pelas mãos de Otília, e de todo o seu repertório de emoções e de saberes culinários que seduziam a todos. Certamente, queria ser seduzido, ou melhor, já estava seduzido pelo Recife, cidade-sereia, como afirmava Gilberto Freyre: Recife cidade-sereia.

 

 

RAUL LODY

BrBdeB

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