“De mão” se come os quiabos

No Caruru de Cosme, há uma grande gamela de madeira redonda aonde sete meninos comem, “de mão”, quiabos e farofa de dendê; e tudo isto faz parte de um verdadeiro banquete devocional dentro das tradições afro-baianas.

É preciso viver este ritual solenemente, pois se tem nesse preceito o contato direto com o sagrado, que culmina no ato cerimonial de comer com as mãos.

Não importa se comemos na rua, num balcão de botequim, se temos pressa ou comemos com calma; se estamos em casa sentado à mesa ou na cozinha; ou se estamos num terreiro de candomblé; para seguir os preceitos das alimentações votivas, pois certas comidas só serão verdadeiramente consumidas quando se faz “de mão”.

O momento de importância se dá na ação imediata do encontro da comida com a boca diretamente, sem talheres, para atender um desejo físico, sensorial, de experimentar o toque.

 

Foto Jorge Sabino

 

Na infância, quem nunca comeu “capitão” – bolinho de feijão, farinha de mandioca, carne-seca desfiado; ou mesmo um pedacinho de toucinho, tudo amassado na hora. Assim, este verdadeiro quitute feito à mão e levado do prato à boca.  Receita que nasce da oportunidade de reciclar a feijoada de feijão preto com todos os seus embutidos e carnes; e tudo misturado com a melhor farinha de mandioca seca, do tipo farinha de guerra.

Quando se come “de mão” surge um sentimento de calma, reflexão, numa ação sensorial que identifica cada ingrediente num exercício quase filosófico. A mão se torna o talher, e os dedos devem ser habilidosos para preparar e consumir.

Da mão de quem faz para a mão de quem acolhe, que elabora de um jeito próprio e especial aquela relação entra a comida e a quem se serve.

Também se deve comer com as mãos muitas comidas que integram o cardápio do Caruru de Cosme e, em especial, quando o Cururu é de “preceito”, ou seja, tenha uma relação devocional com o cumprimento de um voto religioso aos santos gêmeos, Cosme e Damião, os Ibejis na leitura afro-baiana.

Há um conjunto de símbolos que são reconhecidos dentro da cultura, e cada momento aonde o ato de comer com as mãos acontece surge um sentido funcional que faz parte do corpo e que se apresenta no ato da alimentação.

Assim, unem-se os significados que cada comida deverá ter para traduzir para quem come o valor da alimentação.  Há uma impressão digital intransferível, personalizada, no oferecimento e no consumo da comida.

Nas festas do Olubajé, uma celebração do orixá Omolu, há um momento aonde muitas comidas, tais como: feijão preto no dendê; feijão de azeite; bolas de inhame; pipocas – doboru –; milho branco muito cozido, batata doce, milho vermelho temperado com coco, acarajé, abará, acaçá, entre outras comidas, todas servidas sobre folhas de mamona, são comidas ritualmente com as mãos.

E nada mais emocional do que segurar um acarajé após a sua fritura, e ficar com os dedos untados de azeite, e antes de tudo sentir o cheiro da fritura, um convite para o bem comer. O ato de comer recupera experiências, traz memórias, e reafirma o pertencimento a uma cozinha matriz, uma cozinha de matriz africana.

 

Raul Lody

27 de setembro de 2017

 

 

BrBdeB

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