Embora saibamos que as senzalas eram espaços de amontoamento de pessoas em condição escrava, e que tinham instalações sub-humanas e, com certeza, não tinham cozinhas para realizarem festivamente as feijoadas nas senzalas; porém apesar disso, é quase um consenso de que a feijoada era a comida dos escravos na senzala.
Bem, para conduzir este tema complexo temos que introduzir e contextualizar alguns assuntos a partir de bases históricas que mostram diferentes processos sociais. Por exemplo, a plantation de cana de açúcar formava um sistema agrícola quase que exclusivo que visava a produção e exportação do açúcar para a Europa. E foi a grande vastidão de canaviais, no Nordeste, que começou a desmatar a Mata Atlântica. Isto também fez com que vigorasse uma agricultura de subsistência familiar, onde se cultivava especialmente a mandioca, o milho, a abóbora e o feijão.
Integradas aos engenhos de açúcar haviam as casas de farinha para produzir o alimento que daria de comer aos trabalhadores e aos seus senhores. Há, sem dúvida, uma civilização da mandioca na formação do paladar do brasileiro.
Pirão feito com farinha de mandioca, e farinha de milho, comida para a maioria; comida para dar saciedade, para encher o “bucho”. E quando possível: peixe seco e salgado, e frutas nativas; e outros alimentos que apareciam conforme as oportunidades.
Nessa concepção da comida como algo precioso, segue-se um princípio clássico e fundamental que é o de não desperdiçar nada, e aproveitar tudo.
Sempre se valorizou muito a carne, e assim tudo era aproveitado do animal, fosse ave, suíno, caprino, ovino e, em especial, o gado vacum; aproveitava-se vísceras, cabeça, pés, sangue, gordura, para realizar todo tipo de receita.
E a norma de que tudo era aproveitado está presente até hoje nas receitas com tripas, com vísceras, e com muitos tipos de embutidos, enchidos, que são feitos com peles, cartilagens e sangue. A isso se une o hábito de comer feijão, feijão branco com tripas; feijão para acompanhar as carnes salgadas; feijão em forma de feijoada.
Nas versões mais simples, o feijão preto apenas com um pedaço de charque, acompanhado com um pouco de farinha. Na versão do feijão “rico”, que os baianos chamam de feijoada “bordada”, pois está repleta de insumos de origem animal e, em destaque, para as parte do porco que passam pela técnica da salmoura ou da defumação, que além de agregarem sabor especial também são uma forma de conservação do alimento.
Por tudo isso, uma das maiores invenções com o feijão é a feijoada, que passou a ser conhecida como uma “comida de senzala”, certamente por causa da presença da mão africana nas cozinhas, no artesanato culinário e, com certeza, da forte adesão de técnicas culinárias de matriz africana que se misturaram as possibilidades gastronômicas da época.
E para ampliar este cenário, ainda há aquela conversa de que os senhores de engenhos não comiam as partes menos nobres dos animais, como as vísceras; e assim essas partes seguiam para os pratos dos africanos em condição escrava.
Essa mitologia diz que para as mesas dos “brancos” iam somente as partes nobres das carnes, e para as mesas dos “negros” iam as vísceras, as orelhas, os pés, o rabo, entre outras partes do porco, ou outro animal.
Aliada a essa mitologia, há a fantasia sobre a “cozinha da senzala”, onde africanas com lindos turbantes, panos da costa, estavam sempre a cantar e cozinhar em grandes panelas de barro, e a ouvirem ao longe o som dos “batuques”, talvez uma capoeira, uma umbigada. Isso faz parte desta idealização que não condiz historicamente com a verdadeira crueldade que era a vida das pessoas em condição escrava.
Além disso, sabe-se que a cozinha ibérica sempre foi marcada pelo aproveitamento de tudo aquilo que se pode consumir dos animais para transformação em alimentos que vão à mesa.
Há embutidos, enchidos, feitos a partir de gordura, sangue, cartilagem; tem-se o estilo à cabidela para aves, coelhos, lebres; o sarrabulho com o uso do sangue de suíno; as tripas “à moda do Porto”; e tantas e tantas outras receitas que atestam no mundo o aproveitamento de todas as partes dos animais.
Com certeza, a feijoada, por causa da mão africana na cozinha desde de o Brasil colônia, foi apropriada e integrada aos sistemas alimentares afrodescendentes, como é o caso religioso da feijoada de Ogum para alguns candomblés, ou a feijoada de confraternização nas Escolas de Samba, entre tantas. Assim, sem dúvida, há uma forte identidade na feijoada que a consagra como uma comida brasileira.
Raul Lody
Recife, 3 de novembro de 2017