A comida no 1º Congresso Afro-Brasileiro no Recife completa 90 anos (1934-2024)
No mês de novembro de 1934, no Recife, um grupo com intelectuais, com artistas, com o povo do Xangô, e outros representantes afrodescendentes da cidade, reuniram-se para, de maneira organizada e pioneira, mostrar as matrizes africanas no Recife, em Pernambuco, no Nordeste e no Brasil. Assim, é instaurado o 1º Congresso Afro-Brasileiro em novembro de 1934 no aristocrático teatro de Santa Izabel. E na coordenação deste Congresso estava Gilberto Freyre, que trazia muitas questões e temas sobre tantas Áfricas presentes no cotidiano do brasileiro.
O Teatro de Santa Izabel foi escolhido intencionalmente por Gilberto, pois ele queria ocupar um território consagrado à “elite açucareira” para mostrar e discutir os temas de base africana e afro-brasileira, e principalmente ampliar o olhar sobre os valores culturais de um Recife “africano”.
Sem dúvida, o lugar escolhido para se viver este Congresso traz muitos significados, desde a civilização do açúcar fundada na mão africana até os muitos patrimônios construídos nas relações afro-diaspóricas. Sobre estes temas, Gilberto marca sua obra, dedica uma atenção especial para multiculturalidade do brasileiro; e certamente ao propor a realização do 1º Congresso Afro-Brasileiro no Recife, buscou trazer memórias e elementos construtores da nossa sociedade multiétnica.
O 1º Congresso buscou, antes de tudo, realizar um conjunto de ações profundamente simbólicas e democráticas para tentar alcançar, à época, uma compreensão atualizada do que se entendia por patrimônio e diversidade cultural.
Destaque para a importância deste Congresso ocorrido há 90 anos, porque foi também realizado em contextos certamente muito mais racistas, com manifestações diversas e preconceituosas contra as religiões tradicionais de matriz africana. Todas estas questões que até hoje necessitam de revisão e de atualização neste campo tão complexo das relações multiétnicas.
Além de muitos temas abordados no Congresso, a comida ganhou destaque por causa do interesse profundo de Gilberto pelos sistemas alimentares, e os seus múltiplos significados. E a comida é a melhor maneira para se revelar povos e culturas; para estabelecer contatos com o meio ambiente e a história.
A obra de Gilberto atesta e privilegia leituras e métodos de interpretação social através dos muitos significados da comida. Desta maneira, Gilberto busca representações étnicas e identidades num cenário tropical, econômico e cultural do Nordeste. Gilberto assim compreendia a comida, que na visão atual se conceitua como “terroir”.
Gilberto destaca nos Anais do 1º Congresso nos “Novos Estudos Afro- Brasileiros” (1937. Pg. 348), a representação social e étnica do público presente no teatro de Santa Izabel: “(…), cozinheiras velhas, que trouxeram do fundo das cozinhas, de mucambos, receitas de quitutes afro-brasileiros (…)”.
Ainda, destaque para as ialorixás e as quituteiras presentes no Congresso como verdadeiras memorialistas, e preservadoras das receitas e dos processos culinários de matriz africana no Recife.
Gilberto complementa este olhar antropológico, e estético, com uma nova e transgressora leitura sobre arte ao realizar uma exposição, também no teatro de Santa Izabel, formada de: “(…) objetos de arte afro-brasileira – bichos de barro e de pau, cachimbos, figas, estandartes e bonecas de maracatu (…)”. (Ibidem. Pg. 350).
Todos estes exemplos atestam e ampliam o entendimento inaugural do 1º Congresso Afro-Brasileiro, nas muitas maneiras de manifestar alteridade e de mostrar a importância de salvaguardar as memórias ancestrais e a sabedoria tradicional.
Trazer temas culturais profundamente integrados às questões sociais e às questões étnicas dão a este 1º Congresso um sentido de pioneirismo para uma maneira organizada de olhar e discutir questões tão importantes e necessárias para a sociedade brasileira. Marca também o 1º Congresso um entendimento avançado, à época, sobre os direitos à cidadania agregados à diferença e à diversidade cultural e religiosa.
Gilberto Freyre traz a possibilidade de mostrar a diversidade, sem hierarquizar ou submetê-las aos critérios meramente “raciais”, e assim transgredi a partir de uma nova leitura sobre a formação multicultural do brasileiro. Ele destaca uma formação de bases africanas que reúne diferentes civilizações, povos e culturas.
Então, a comida ganha um lugar especial no 1º Congresso de 1934, certamente em experiências culinárias que foram escolhidas numa região marcada pelo açúcar; e destaque para o cardápio oferecido aos congressistas, a partir de um prato popular, cotidiano, presente em todas as classes sociais do Recife. Gilberto escolhe uma mistura de inhame cozido com mel de engenho; e, segundo seu próprio texto também é oferecido: “(…) uma negra velha, com seu fogareiro, seu vestido de baiana, seu chalé encarnado, assou milho e fez tapioca de coco”. (Ibidem. Pg. 351).
Todos os congressistas comeram inhame, raiz africana, misturado com o mel da cana de açúcar, o melado, que expõe ao mesmo tempo o açúcar enquanto um produto relacionado à condição escrava do homem africano no Brasil. Africanos, milhões de africanos, por mais de 300 anos na barbárie da escravidão, trazidos para plantar, colher e fazer açúcar da cana, especialmente no Nordeste, em Pernambuco.
Neste Congresso de 1934, importantes depoimentos trazem nomes de comidas que apontam para cozinhas de base ritual e religiosa do Xangô pernambucano, importantes espaços mantenedores de ingredientes e de receitas. Estas receitas chegam com Dona Santa, famosa rainha do Maracatu Elefante e ialorixá; e com os babalorixás Oscar Almeida e Apolinário Gomes, todos do Recife.
Assim, eles informam sobre o eôfupá e o eôfunfun, farofas de inhame, uma com dendê a outra sem dendê. O eôfupá traz o termo “pá” ou “pupá”, que em Yoruba significa vermelho, e desta maneira se refere ao dendê. O eôfunfun aponta para fun-fun, que em Yoruba significa branco, no caso sem dendê. Ainda, há referências para o acará, môlocum, ôxóxó, beinham, béguiri, amalá, xinxim de folha de mostarda.
Certamente, a mesa de matriz africana é fundada e reconhecida entre outros ingredientes pelo inhame, que é destacado nas tradições e sabedorias que foram acumuladas especialmente nos terreiros de candomblé, verdadeiros espaços de memórias e de experiências das civilizações: Yoruba, Fon-Ewe e Angola-Congo.
Tudo que chegava da África para o Brasil recebia a designação geral “da costa”. Desse modo “da costa” passou a determinar os variados produtos que chegavam da África, e foi também uma maneira, a partir do século XV, de identificar as regiões que se reúnem no golfo do Benin, e em amplo território de países como: Benin, Nigéria, Togo, Gana; São Tomé e Príncipe. Ainda, em locais historicamente conhecidos como: Costa da Malagueta, Costa dos Escravos, Costa do Marfim, Costa do Grão, Costa da Guiné; territórios em que o inhame é uma espécie nativa.
E assim, o inhame, uma raiz africana fundamental nos sistemas alimentares deste continente, está presente nas comidas do cotidiano, nos festivais religiosos que celebram as colheitas; e marcam os aspectos simbólicos da fertilidade, da vida e dos deuses; passa a fazer parte dos sistemas alimentares do brasileiro.
Especialmente no Nordeste, o inhame está na mesa do cotidiano, juntamente com a batata doce, o cuscuz de milho, a tapioca, o queijo de coalho; além de outros complementos que irão acontecer conforme as tradições alimentares de cada localidade; também relacionados às questões socioeconômicas, certamente numa seleção dos alimentos que comporão os hábitos alimentares.
Destaque para o ipeté, uma comida Yoruba feita com inhame e dendê, onde o inhame servido na forma de bola é um acompanhamento tradicional para o caruru de quiabos.
Também, nas festas religiosas como o pilão de Oxaguiã, o inhame simboliza a fertilidade, a agricultura, a alimentação dos mitos da criação do homem e do mundo. Aí, ritualmente, o inhame é pilado num pilão especial e é oferecido para todos os presentes, numa espécie de comunhão pela alimentação simbolizada pelos orixás fun-fun, orixás identificados pela cor branca.
Este olhar especial para comida e os seus muitos significados, seus aspectos nutricionais, seus aspectos simbólicos, também reforçam as bases etnoculturais, no caso a partir das matrizes africanas que estão integrados aos principais temas do 1º Congresso Afro-Brasileiro.
Este entendimento sobre a alimentação está marcado na obra de Gilberto Freyre, sendo também um importante vetor para estabelecer as muitas relações sociais e culturais na diversidade e na pluralidade do povo brasileiro.
Gilberto encontra e enfatiza a comida como uma expressão que localiza povos e culturas, e ele aprofunda seus sentimentos nos doces pernambucanos e, em especial, nos bolos, quando publica o seu livro “Açúcar” (1939).
Também situa e enfatiza as matrizes formadoras do brasileiro na sua obra “Casa-Grande & Senzala” (1933), onde mostra as muitas formas de fazer comida e comer no cotidiano e na festa. É assim, pela comida, que ele quer compreender o brasileiro.
Este 1º Congresso de 1934 acontece numa sociedade repleta de preconceito e racismo. O Congresso quer destacar as referências da presença de uma vida africana no Recife; apontar para a cultura do cotidiano, para as festas populares e tradicionais, como, por exemplo, os maracatus de baque-virado ou maracatus africanos, todos de base e de significados africanos e integrados ao Xangô pernambucano.
Gilberto considera que estas permanências africanas são fundadoras e fazem o caráter de um povo, de uma região e, em especial, no caso do Recife, uma cidade que é tão afro quanto a cidade do São Salvador, Bahia.
Ainda, Gilberto aponta ora para um Recife muçulmano de povos do Magrebe, norte do continente africano, ora para um Recife formado pelos africanos em condição escrava, como os vindos da Costa ocidental, da Costa oriental e da centro-atlântico. São as muitas e diferentes “Áfricas” que formam o povo do Recife, de Pernambuco e do Brasil.
Notável é que, ainda hoje, nos mercados e nas feiras do Recife, quando se vai comprar inhame, ou mesmo o cará, eles são respectivamente chamados de “inhame da Costa” e de cará “São Tomé”, maneiras memoriais que trazem referências aos territórios da África Ocidental.
Há muito para se compreender e se transformar nesses cenários sociais e contemporâneos, que estão sendo marcados pela intolerância religiosa e pelas inúmeras formas de expressão do racismo e do preconceito, tão abjetos como foi a própria escravidão no Brasil.
Sem dúvida, a realização deste Congresso é um marco de valor histórico e ideológico, numa sociedade tão afro-diaspórica como é a nossa sociedade brasileira.
RAUL LODY