“A descoberta de um novo manjar causa mais felicidade ao gênero humano que é descoberta de uma estrela”. (Savarin)
No clássico livro de Brillat Savarin, A Fisiologia do Gosto, há uma forte tendência de observar e de estabelecer conexões entre os ingredientes exóticos nos ambientes sociais, culturais e econômicos, dentro dos hábitos alimentares da França.
Nele, há uma busca permanente nas muitas interpretações e conexões com a sua história social, história da burguesia francesa, num período após a revolução francesa. Também, há uma espécie de retomada com um olhar para novos sistemas alimentares, certamente com a valorização de uma identidade nacionalista que se afirma nas muitas expressões da cultura. E nessas muitas expressões está a comida e tudo aquilo relacionado à alimentação, numa ideia de pertencimento e de construção ideológica da França.
É neste ambiente que Savarin nutre e inaugura sua obra, que em 2025 celebra 200 anos da sua publicação. Nestes muitos olhares, estão olhares de descobertas sobre a comida, que são sempre mais bem analisadas quando integradas à complexidade dos aspectos econômicos da produção alimentar, do consumo; da formação de novos hábitos e, certamente, de novos estilos de como se relacionar e simbolizar à mesa.
Assim, Savarin quer estabelecer suas bases históricas e ideológicas no campo da gastronomia, seja de certa maneira nacionalista e, ao mesmo tempo, sendo também sensível às questões dos sistemas alimentares exóticos, e dos ingredientes de outros povos e culturas do mundo.
Savarin, nesse seu trabalho pioneiro, quer afirmar a gastronomia como um processo plural e relacional, que está ligado com diferentes culturas, com questões sociais e econômicas, com diferentes maneiras de interpretação das comidas e bebidas. Tudo isso sempre contextualizado, e integrado aos princípios da alimentação e da valorização crescente da comensalidade.
Neste clássico de Savarin, ele elege alguns alimentos como alimentos de grande interlocução e de fundamentação social, econômica e cultural, e que certamente servem como importantes indicadores para a construção das suas teorias inaugurais, para sua primeira definição do que é a gastronomia.
É presente e marcante na sua obra um sentimento de que a alimentação vai muito além do ato de nutrir. E Savarin quer mostrar e destacar que todos os rituais sociais em torno da mesa, que os rituais sociais das cozinhas, dos restaurantes e de outros locais de comer, apresentam-se para mostrar diferentes entendimentos na construção de diferentes gastronomias.
Savarin recorre e se apoia nas questões históricas para situar os alimentos, para então melhor entendê-los. Diz Savarin:
“Mas aquelas terras, onde o calor do sol faz fermentar campos de extrema fecundidade, se mostraram favoráveis a cultura do açúcar e do café, lá também foram descobertos a batata, a baunilha, o índigo, a quinquina, o cacau… estes são verdadeiros tesouros”.
Assim, ingredientes exóticos vão ganhando cada vez mais espaço nas cozinhas da Europa, e, desse modo, Savarin afirma o seu olhar devotado para as cozinhas da França. Nestes ambientes dos novos sabores, há certamente um destaque especial para o cacau, que entrou na Europa pela Espanha, e a partir daí se ampliou o seu consumo para outros territórios deste continente.
Inicialmente como uma bebida, uma bebida especial, uma bebida das cortes, somente muito depois no século XIX é que o chocolate ganha o seu formato sólido; é assim que se amplia muitíssimo a sua produção e o seu consumo no mundo. E continua Savarin:
“Convencionou-se chamar chocolate a mistura resultante da amêndoa do cacau queimada com açúcar e canela: tal é a definição clássica do chocolate. O açúcar é parte integrante, pois sem ele faz-se apenas pasta de cacau e não chocolate. Quando o delicioso aroma da baunilha é adicionado ao açúcar, a canela e ao cacau; atinge-se aquele nec plus da perfeição que pode chegar tal preparação. Foi a este pequeno número de substâncias que o gosto e a experiência reduziram os numerosos ingredientes que se tentou sucessivamente associar ao cacau, como a pimenta, o anis, o gengibre, a acioa e outros.”
A Acioa é um ingrediente que merece um olhar especial, planta da Amazônia, Acioa guyanensis, popularmente conhecida como castanha de cotia, é uma amêndoa comestível. Usava-se com frequência esse ingrediente na preparação de chocolate na França, como localiza Savarin, pois destaca o uso desta espécie da Guiana Francesa, um aproveitamento das possibilidades gastronômicas dos territórios da França além-mar.
Os diferentes aspectos sociais integrados ao entendimento da comida e da alimentação dão para Savarin um dos seus mais notáveis fundamentos para a construção das bases conceituais do que é gastronomia, nessas muitas perspectivas verdadeiramente antropológicas. Assim, continua Savarin a mostrar como os ingredientes vão formar novos comportamentos sociais:
“As damas espanholas no Novo Mundo amam o chocolate com furor, a ponto de, não contentes de tomá-lo várias vezes por dia, o levarem inclusive quando vão à igreja. Essa sensualidade provocou com frequência a censura dos bispos, mas eles acabaram por fechar os olhos e o reverendo padre Escobar cuja metafísica foi tão sútil quanto condescendente era a sua moral e declarou formalmente que o chocolate líquido não corrompeu o jejum, estendendo assim em favor de seus penitentes, o antigo adágio : Liquidum non fangit jejenium.”
A botânica, como outras ciências, tem recorrência e grande interesse por Savarin para construir as suas teorias, pioneiras teorias sobre a gastronomia.
No caso do chocolate, ele também buscou o entendimento sobre o cacau, a base, desse novo alimento para a Europa.
“Sabe se que Lineu nomeou o cacau Cacao theobroma (bebida dos deuses). Buscou-se uma causa para essa qualitativo então tático: uns o atribuem ao fato de o cientista amar apaixonadamente chocolate: outros a vontade que tinha de agradar seu confessor; outros ainda, a sua galanteria, por ter sido uma rainha a primeira a introduzir o costume.”
Embora Savarin busque múltiplas referências históricas, culturais, civilizacionais para os alimentos, sem dúvida, há um olhar dominantemente francês no seu entendimento sobre as relações comida e alimentação. E certamente na construção da teoria da gastronomia, que também quer valorizar as cozinhas da França.
“Tendo o chocolate se tornado usual na França todo mundo resolveu fabricá-lo; mas poucos atingiram a perfeição, porque uma fabricação está longe de ser fácil. Primeiro é preciso conhecer o bom cacau e queria usá-lo em toda a sua pureza, hoje mesmo numa caixa de frutos bem selecionados alguns de qualidade superior; e o lucro mal compreendido me leva com frequência a deixar passar amêndoas avariadas, que o desejo de proceder corretamente deveria fazer rejeitar (…). É preciso também um talento especial para regular bem a quantidade de açúcar que deve entrar na composição; ela não deve ser invariável e rotineira, mas determina-se em função do grau de aroma da amêndoa e do dá torrefação ao qual que chegou. A trituração e a mistura não requerem menos cuidados; já que ver sua perfeição absoluta depende em parte a maior ou menor digestibilidade do chocolate.”
É notável e interessante o olhar de Savarin sobre os variados aspectos formativos do chocolate. Certamente os preparos então simbolizados, milenarmente simbolizados. Contudo, ele ganha na Europa novas dimensões, e por isso novas dimensões simbólicas no mundo.
Sem dúvida, o estilo de Savarin é orientador para todos nós profissionais do campo da gastronomia, e que a sua obra fundamental deva ser sempre estudada, relativizada; e ainda valorizada nas muitas perspectivas que o autor oferece àqueles que têm interesse a ela recorrer.
RAUL LODY