No entendimento do que é sagrado nas tradições de matriz africana, nesta tão rica e ampla diáspora no Brasil, quero destacar a deificação da natureza e, em especial, o entendimento simbolizador e mantenedor das memórias que habitam as árvores.
Refiro-me especialmente as árvores sagradas, lugares de contato com a identidades coletivas, lugares de rituais que reativam entendimentos tão particulares sobre a pessoa e sua história social, conforme as bases e os princípios filosóficos etnoculturais, que são tão diversos e tão singulares para tantas culturas e civilizações do continente africano.
Daí a importância em localizar e situar territórios que possam delimitar as manifestações do que podemos chamar de fitolatria, que faz parte das muitas relações e complementações das falas sagradas por meio das árvores, algumas árvores, aquelas que são especialmente escolhidas e sacralizadas para serem referências eternizadas em que se vivem e se realizam cultos religiosos.
Neste momento, com este texto, quero trazer algumas referências das tradições religiosas dos Fon, especialmente localizados no Benin, popularmente conhecidos e chamados no Brasil de Jeje. Nestas tradições as árvores sagradas são conhecidas por “atins”, e representam alguns voduns que vivem nas árvores, ou melhor, que são as próprias árvores.
Cada árvore escolhida é uma árvore vigilante e fundamental nas muitas e complexas relações das bases do poder hierarquizado, tanto da sociedade que está integrada quanto ao diverso e complexo entendimento de ancestralidade, e das muitas maneiras de viver o sagrado.
Estas árvores marcam lugares e referências que possibilitam as pessoas se expressarem e se comunicarem, em âmbito interpessoal, conectarem-se com os deuses e outros mitos simbolizadores.
Assim, os chamados atinmé-vodum que habitam as diferentes árvores, como o lokotin na gameleira branca, no caso brasileiro; e no Benin a Milicia excelsa que é a árvore do vodum Loko, também a ceiba, da espécie Ceiba speciosa, a popular paineira, que nas minhas pesquisas de campo localizei como árvore sagrada de Iroko, para os iorubás; em Cuba e no Brasil esta árvore representa o vodum Azanodo, especialmente na Bahia.
Este tão importante significativo patrimônio cultural e religioso de matriz africana, na diáspora, tornou-se cada vez mais raro, visto que as tradições religiosas e as memórias que funcionam como mantenedoras dos muitos e diversos rituais religiosos são cada vez mais restritos; e passaram a ser localizados nas experiências especiais apenas de alguns terreiros, aqueles detentores de longa sabedoria sobre os voduns.
O sagrado e as árvores mostram um crescente interesse, embora muitas notícias que circulam nas redes sociais, na sua grande maioria, um amontoado de achismos, não são merecedoras de credibilidade enquanto bases mantenedoras destas memórias.
Então, eu quero trazer da minha longa experiência em campo, como um estudo de caso exemplar, as memórias mantenedoras que identificam o vodum Azanodo, que segundo as tradições da diáspora é cultuado no dia 6 de janeiro, dia dedicado aos Santos Reis Magos.
Também, trago aqui informações que ouvi de vozes autorizadas pelo conhecimento e pela experiência cotidiana do sagrado na tradição do Jeje e no culto dos voduns, na Bahia, em terreiros que ainda preservam nas práticas religiosas esses contatos ancestrais e fundamentais na afirmação das identidades sagradas que, por meio das tradições orais, fazem viver os voduns e suas árvores sagradas.
Inicialmente dizem que não há iniciação religiosa para o vodum Azamadone; sendo assim não há sacrifício de animais, não há oferecimento de sangue nas árvores.
Dizem ainda que as principais obrigações estão num oferecimento de frutas, frutas da época, frutas do verão tropical, de todas as qualidades possíveis, de todos os tipos, num oferecimento ritualizado simbolizador de fartura. É uma grande representação de tudo que a terra possa dar em frutas, como se estivéssemos num complexo ritual das muitas colheitas, literalmente os frutos das muitas colheitas.
A árvore sagrado de Azanodo fica repleta de frutas, muitas, muitas frutas, e tudo ocorre num ambiente em que as pessoas usam roupas brancas, e oujás brancos vestem a árvore. Sem dúvida, um grande ritual da fertilidade, um verdadeiro ritual agrícola que mostra o que comer na alimentação do vodum e na alimentação do homem.
Ainda, as tradições orais ampliam este entendimento religioso, da sacralização da natureza, na firmação do culto das serpentes sagradas Dã, fundamentais na cultura Jeje, porque também na árvore de Azanodo está na sua base uma serpente que busca a sua cauda, uma serpente que mostra o sentido vital da fertilidade que marca e identifica as frutas de Azanodo.
Porque tudo é movimento, porque é a serpente que move o mundo é o entendimento da vida. É o entendimento da fertilidade.
É Azanodo que mostra a comida, a fartura, a importância da alimentação para a vida do homem. A árvore é uma grande referência, ela expõe os princípios ideológicos e filosóficos que veem do continente africano.
Raul Lody