O sentido alimentar dado pelo objeto

Os 200 anos da porcelana e do cristal da Vista Alegre (1824-2024).

Os muitos processos e maneiras de representar os complexos rituais sociais da alimentação acontecem profundamente integrados aos objetos, aos utensílios escolhidos para conter as comidas e as bebidas, conforme as etiquetas das diferentes sociedades e culturas.

Sem dúvida, há um diálogo fundamental e funcional entre a representação estética do objeto e da comida. Este texto visual é marcado pela história, pela tradição do serviço das comidas e das bebidas, dentro da sua diversidade etnocultural, onde só serão apresentadas, guarnecidas, na forma de serviço para o consumo, com os utensílios convencionalmente indicados e reconhecidos pela cultura. Uma espécie de legitimação visual do que se come e do que se bebe através dos objetos autenticadores.

O uso de cada objeto/utensílio é simbolizado, e se refere aos mais diversos sentidos e sentimentos que ele pode oferecer à comida e à bebida durante a sua apreciação e o seu consumo. Texturas, cores, formas, do objeto misturam-se as características dos ingredientes, das diversas possibilidades de preparos das comidas e das bebidas, para fazer assim uma criação em que há um entendimento único de como aquilo deve ser reconhecido e consumido.

Nestes contextos, firmam-se os lastros de pertencimento e de identidade do objeto/utensilio diante da comida e da bebida. Cria-se um entendimento multissensorial que verdadeiramente orienta e possibilita a ação alimentar.

São muitos os objetos que chegam das mais variadas procedências, seja na produção artesanal ou na produção industrial, que apoiam o entendimento e o significado de cada comida que é servida, para que ela seja então consumida plenamente na sua lógica alimentar e simbólica.

Quero trazer como estudo de caso a tradicional fábrica de louça, vidro e cristal, Vista Alegre, localizada em Ílhavo, Aveiro, Portugal. Esta fábrica, que em 2024 celebra dois séculos de existência, tem uma produção ampla e diversa para abastecer especialmente os serviços a mesa.

Fundada em 1824, a Vista Alegre, ainda no século 19, ganha o Alvará Régio de D. João VI, que autoriza o funcionamento desta fábrica, e mais tarde ela recebe o título de Real Fábrica.

Inicialmente a produção Vista Alegre concentrava-se em louça, ainda sem a identificação de porcelana, e com a produção de muitos objetos em vidro, certamente motivada pela tradicional produção portuguesa de vido da fábrica Marinha Grande.

A fábrica Vista Alegre com o intuito de ter uma produção mais refinada, e próxima das porcelanas mais renomadas da Europa, busca especializações nos ofícios de se fazer porcelana na consagrada e renomada região de Sèvres, na França.

Nesse ambiente de uma tradicional valorização de porcelanas, há algumas marcas que têm um certo parentesco estético funcional com a Vista Alegre, tais como: Meissen, Scalla, Limogens, Haviland, Bernardand. São marcas que afirmam suas identidades tecnológicas, e identificam a boa porcelana, que deve apresentar uma qualidade translúcida.

Certamente, dentro do amplo acervo de objetos de porcelana da Vista Alegre que afirma identifica a fábrica, a partir dos anos 1970, inclui-se na sua linha de produção de utilitários, especialmente para os serviços de mesa, objetos feitos de cristal, cuja identidade e técnica do artesanato vidreiro chega do cristal de Alcobaça, que ganha com a inclusão do grupo Atlantis uma ampliação das ofertas de produtos para a marca Vista Alegre.

Brasil Bom de Boca
Foto Jorge Sabino

Quero destacar, com o objetivo de celebrar o bicentenário da Vista Alegre, a inclusão no catálogo de objetos utilitários e de serviços à mesa, um copo especial de cristal para servir e beber cachaça. Diga-se, a cachaça brasileira, tão tradicional bebida da cana de açúcar, e que marca a identidade dos nossos rituais de comensalidade. A cachaça, certamente, é fortalecida pelos muitos produtos alimentícios que chegam de uma verdadeira civilização a que podemos chamar de civilização do açúcar.

É importante observar que, na construção do hábito de servir e de beber cachaça no Brasil, nós temos objetos utilitários especiais, como os pequenos copos que há muito fazem a identidade desta bebida consagradamente nacional, brasileira.

Os diferentes objetos utilitários têm dinâmicas de usos e de representações, tanto sociais quanto simbólicas, que acompanham os hábitos e ampliam as escolhas; e, em especial, com a cachaça, com seu alto teor alcoólico, vigora uma tendência de que o copo tenha uma quantidade pequena, de um gole, de um gole de cachaça.

Nestes contextos das tradições populares de se beber cachaça, e os imaginários que fazem parte dos hábitos de quem consome a bebida, chega neste ano ao mercado um copo de cristal criado pela Vista Alegre, um copo especial para cachaça.

O design apresentado pela Vista Alegre, em cristal, para o copo de beber cachaça não recupera os desenhos convencionais dos pequenos copos feitos de vidro; e, em especial, do estilo “copo-americano”, que estão nos bares, nos botequins, nos restaurantes, feiras, nos mercados, onde são servidos bebidas e, em destaque, a cachaça. Há uma identidade brasileira já bem assumida com esse copo tradicional e popular que se une ao hábito de se beber cachaça.

Certamente com a ampliação dos mercados da cachaça com novos rótulos, com a recuperação de processos tradicionais, com um verdadeiro valor agregado de bem patrimonial que marca e promove esta bebida de terroir brasileiro, assim como os novos usos na gastronomia, e a sua inclusão nos muitos rituais sociais, beber cachaça passa a pertencer aos contextos das rodas de bebidas destiladas no mundo.

Neste ambiente, surge o copo especial da Vista Alegre para a bebida, o que me parece, inicialmente, uma maneira de localizar o consumo da cachaça num lugar diferenciado, num status legitimado da nobreza de um utilitário feito de cristal.

Na loja Vista Alegre de Lisboa, o copo de cachaça está acompanhado de um cartaz que anuncia o referido copo. Cartaz com desenhos da cana de açúcar e de uma mulher branca (ver foto), creio, de inspiração retrô, anos 1940, alusivo ao consumo da cachaça pela mulher, porque num ambiente tradicional o consumo é marcadamente masculino.

E assim, os objetos integram-se ao entendimento estético e funcional das comidas e das bebidas, e ainda possibilitam novos e dinâmicos entendimentos de consumo e de identidade.

Raul Lody

BrBdeB

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