É preciso desromantizar a gastronomia

Há uma grande tendência na valorização, diria uma exagerada valorização, das comidas tidas e interpretadas como comidas memoriais e que remetem as relações familiares, as relações de afeto; especialmente com os avós, com os pais, e que trazem assim muitas referências particulares, pessoais; e principalmente emocionais perante certas comidas, porque as comidas trazem um condicionamento alimentar predominantemente relacionada ao afeto, ao amor; daí, muitas pessoas denominarem estas comidas como ‘comida afetivas’.

E há um crescente detalhamento formal que une referências de gostos e, diria também, representações emotivas nestas comidas que se ligam as representações de afeto, numa ‘revalorização’ destas comidas, e que passam a serem vistas para muito além do ato nutricional; e assim assumem o sentido de verdadeiro ato de doação de amor, uma quase transferência de afeto fortemente simbolizada através do sabor, do aroma, da textura, e até da temperatura, e assim marcar sentimentos pessoais que se replicam nas gerações familiares.

As memórias são capazes de guardar, elaborar, significar; e ainda idealizar conforme a funcionalidade de cada fato ou informação, nesse caso, um sabor, um odor, uma forma, uma cor; enfim uma comida que se localiza nos rituais da alimentação como um elo de fortalecimento dos laços de afeto.

 

Brasil Bom de Boca
Foto Jorge Sabino

 

Sabe-se, porém, que as comidas não carregam só afeto, elas carregam também as possibilidades econômicas que são visíveis no máximo aproveitamento dos ingredientes, nas adaptações de receitas, nas reinvenções de receitas. Tudo isso mostra quais são as possibilidades de cada comida quando estão integradas nos seus ambientes sociais, onde representam e integram as escolhas alimentares, e o entendimento das tradições alimentares.

Destaco a funcionalidade dos ingredientes e suas inclusões nas receitas para poder tocar num entendimento cotidiano de sustentabilidade, diga-se sustentabilidade para poder comer, para poder garantir as três refeições diárias, conforme as possibilidades, os recursos do terroir; e demais questões que estão neste entendimento de comida de afeto. Porque a comida de afeto é a comida possível, certamente oferecida em diferentes rituais sociais dentro da trajetória da pessoa na sua sociedade.

Certamente o “ato de se alimentar” é um ato fundamental que está repleto de significados conforme as culturas e os povos. E assim, ampliam-se o entendimento das redes de afeto que condicionam as comidas conforme as experiências pessoais de cada um.

E todas estas questões aliam-se aos princípios da segurança alimentar e da soberania alimentar, e une os entendimentos sobre “o que comer”, “por que comer”, e o que é escolhido pela cultura.

Nestes cenários sociais, a segurança alimentar reúne muitos fatores, destaque para o econômico que é o que verdadeiramente orienta e indica as possibilidades de acesso e de uso dos ingredientes; e assim a possibilidade de realizar as receitas.

Sem dúvida, os fatores contextuais de uma receita são tão determinantes como as indicações das quantidades dos ingredientes e dos modos de fazer. A receita é um texto social, econômico, ecológico, que traz muitas simbolizações e marcas autorais; e, certamente, nestas marcas autorais estão as marcas do afeto, da amorosidade, que fazem no seu conjunto um ato imemorial que é o dar de comer.

Assim, se alimentar é um ritual complexo, e é um ato que ganha maior relevância quando representado na amamentação, quando se vê o leite materno como o alimento fundante das relações de afeto.

Ainda, vê-se a alimentação enquanto uma forma de doação, de permitir acesso à vida, de unir princípios fundadores que nascem das mais íntimas relações “bio-culturais”.

Estes muitos e diversos processos que fazem a valorização humanizada da alimentação, vindos hoje pelos apelos dos mercados de consumo que se unem a ampliação dos mercados da gastronomia, ganha muitas interpretações que também buscam ampliação do fortalecimento da tendência do que se pode chamar por comida afetiva, uma comida idealizada com referências nos ambientes familiares, das casas, das relações predominantes da mulher que realiza o ato inicial da alimentação.

Por tudo isso, fala-se de uma comida muito particular, e com uma forte relação indicada pelas comidas infantis. E aí se passa a buscar nos restaurantes, e em outros lugares de consumo de comidas, os pratos que tragam as receitas reveladoras das relações de afeto. É isso que ganhou um contorno de mercado.

A comida com afeto traz no seu entendimento básico uma busca pelo reencontro de memórias, de sabores, de cardápios voltados a um imaginário daquelas comidas que se conectam as histórias pessoais, geralmente da nossa infância; da nossa iniciação na educação do paladar e dos hábitos alimentares.

Assim, a comida com afeto traz, sem dúvida, afetos, más traz também contextos sociais, e contextos ecológicos que possibilitam acesso a certos alimentos, para formar acervos de receitas, e os seus muitos e diversos rituais de sociabilidade, e, desse modo, marcar simbolicamente um parentesco que nós temos com cada comida que foi guardada na nossa memória.

 

 

RAUL LODY

BrBdeB

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Voltar ao topo