Cada vez mais, a comida é percebida e valorizada como uma manifestação cultural que deve ser entendida, assimilada; e cerimonialmente assumida para ganhar o seu valor simbólico.
Comer não é apenas o ato complexo biológico da alimentação. Comer é antes de tudo um ato tradutor de sinais, de reconhecimentos formais, de cores, de texturas, de temperaturas e de estéticas. Comer é um ato que une, além da fome, memória, desejo, significados e sociabilidades, que traduz a pessoa que ingere os alimentos, o seu contexto e época de vida, também cria uma comunicação com os outros que participam desse momento de comensalidade.
Nestes cenários de cultura e sociedade, as comidas são ampliadas pelos seus muitos significados e representações no consumo, na simbolização, na atestação de pertencimento; e na globalização que se confronta com o sentido patrimonial da comida.
E, é desse modo que aparecem receitas como: o acarajé vegano, feito partir do inhame; ou mais recentemente nos balcões dos restaurantes asiáticos o “acarajé japonês” – que se apropria da morfologia e de outras características gerais do acarajé original, como a cor; é um modo de apelar e motivar um consumo relacionado as memórias visuais que remetem ao verdadeiro acarajé à moda afro-brasileira.
Esse tipo de recurso comercial é amplo, e se utiliza de denominações como queijo vegano, queijo tipo parmesão; e como não falar das “trufas” amplamente consumidas no Brasil, ou seja, qualquer bolinha de chocolate, ou qualquer outro ingrediente semelhante, e que se distancia do que seria verdadeiramente um “tartufo” no seu significado original.
Essas analogias e apropriações morfológicas estão em amplo e crescente desenvolvimento, tanto de consumo quanto de aumento da ignorância sobre o que é o produto original.
Os alimentos que imitam os verdadeiros, e que estão no mercado de consumo, com suas denominações estranhamente falsas, banalizam os sistemas alimentares e patrimoniais do Brasil. E assim atenção quanto ao acarajé, considerado como Patrimônio Nacional (IPHAN) dentro do Ofício das Baianas de Acarajé que é um registro que necessita de salvaguarda e de políticas de proteção.
O acarajé japonês é, também, um bolinho frito, recheado com salmão, que recebe encima um pouco de cream cheese e camarões. Aliás, o cream cheese é um ingrediente originalmente estranho nas cozinhas da Ásia, e que por questões comerciais, e de adequação aos paladares ocidentais, passou a integrar muitas receitas de sushi, entre outras receitas, que ficam sem identidade e vinculação de terroir.
Os mercados globalizados massificam sabores e criam falsas verdades gastronômicas, e assim atuam na consolidação de receitas desvinculadas das suas bases culturais.
O valor cultural do ato de comer deve ser entendido enquanto um ato patrimonial, e não apenas um hábito puramente nutricional, pois a comida é tradutora de povos, nações, civilizações, grupos étnicos, comunidades, famílias, pessoas.
O sentido de pertencer a uma sociedade, a uma cultura nasce primordialmente ao se falar um idioma e de fazer parte de tradições alimentares. Assim, a comida é um ‘lugar’ que define e aufere a pessoa o seu pertencimento, a sua identidade, onde ela partilha de um modelo que reúne ética, moral, hierarquia, e papéis sociais.
Dos muitos pratos de matriz africana, o acarajé é um dos mais emblemáticos, pelo que significa em âmbito social e religioso, e pelo que significa na afirmação de uma longa tradição de vender comida na rua, nesse caso, pela baiana de acarajé.
A venda de acarajé no tabuleiro é uma permanência econômica dos ‘ganhos’, atividade que acontecia desde o período do escravagismo, quando mulheres iam para as ruas oferecer pratos salgados; e bebidas artesanais, entre elas o emú, o vinho de palma ou vinho de dendê.
O acarajé, no processo histórico dos povos africanos no Brasil, marca o Estado da Bahia e, em especial, a cidade do São Salvador. Há uma profunda identidade de pertencimento do acarajé com o povo baiano e suas muitas tradições culturais.
O acarajé é um bolinho preparado com um tipo de feijão que recebe o nome popular de fradinho, cebola, sal, e frito no azeite de dendê. Na vida cotidiana, o acarajé é comido quente, puro ou acrescido de molho de pimenta, vatapá, caruru, salada ou camarão defumado, é quase um sanduíche, popularmente chamado de ‘sanduíche nagô’.
Ainda, o acarajé está presente no cardápio sagrado do candomblé, sendo comida especial dos orixás Xangô e Iansã e integra um importante imaginário das comidas de dendê na formação de uma gastronomia dos terreiros.
Comer acarajé no final de tarde na cidade do São Salvador é um costume que pontua o cotidiano.
Assim, é essa a compreensão mais atual e internacional sobre patrimônio cultural, é justamente aquilo que há de particular, próprio, que marca uma identidade.
O reconhecimento patrimonial de uma comida é o reconhecimento da importância do sistema alimentar na formação da identidade, na afirmação dos direitos culturais e no fortalecimento da cidadania.
Raul Lody