Eparrei Bárbara! Fé e festas de comer

Fé e festa

A fé é festa. Festa na rua, na praça, no adro, no largo.
Lá vai seguindo a procissão. Andores de santos, andores de devoções partilhadas com os orixás, com o ser baiano de crer e de expressar religiosidade.
Lá vai seguindo a procissão. Vivas! Fogos! Salve o meu santo!
Recolhidos os andores, os vivas e as fitas; as flores e as velas; os hinos e as rezas alargam-se os sentimentos tornando-se a festa mais do corpo do que do espírito.
A festa é mais larga, nas barracas de comidas, nos tabuleiros das baianas de acarajé, no samba-de-roda, no som mecânico, no berimbau, no pandeiro, na palma de mão.
Os sons, as luzes, a noite abriga a festa.
Festa que se estende e se alarga na alegria que mistura e fala de fé geral e experimentada.
Alargam-se as emoções. A festa é larga.
A festa é de largo.

 

Devoção

A Irmandade de Nossa Senhora do Rosário, ou simplesmente o Rosário dos Pretos abriga devoções do povo do santo como a São Benedito, Santo Antônio do Categeró e a Santa Bárbara. Dessas a mais recente é a de Santa Bárbara, ocorrendo pelos irmãos de devoção há 4 anos.
Os santos cultuados nas suas devoções especiais têm também festas próprias, unindo sempre no sentimento do que é festejar com a comida.
Em janeiro, no dia 9, é Santo Antônio do Categeró que é lembrado com uma feijoada, diga-se feijoada de comer de mão. Em abril, no último domingo comemora-se São Benedito, oferecendo-se cafezinho e sopa. Em outubro celebra-se Nossa Senhora do Rosário, no último domingo. Os festejos são iniciados com um café da manhã, incluindo cuscuz de carimã, de inhame, banana da terra e outras frutas. Na segunda-feira, dia do tradicional escaldado de bacalhau. Dezembro é o mês de Santa Bárbara, que também é lembrada nas missas das quartas-feiras, culminando com o oferecimento de acarajés. Isso se dá com uma baiana tradicionalmente vestida, oferecendo acarajés pequenos, nos formatos também tradicionais em tabuleiro de madeira forrado de folhas de bananeira.
No dia 4 de dezembro, os irmãos de devoção de Santa Bárbara também oferecem um caruru, cumprindo assim mais um ritual que une a santa ao povo do candomblé.
A devoção de Santa Bárbara é organizada com um presidente, secretário, tesoureiro e irmãos.
Enquanto festa de largo, a Festa de Santa Bárbara vem marcando um lugar de destaque, de uma celebração coletiva que de ano a ano vem conquistando novos adeptos, fazendo um novo evento no calendário das devoções populares da Bahia.
Do tradicional Mercado de Santa Bárbara, onde originalmente a procissão era organizada e de onde também saia o andor para percorrer algumas ruas do antigo cento histórico, Pelourinho, visitando, em especial o quartel do Corpo de Bombeiros assim revivem-se devoções e uma fé sempre ampliada.
O andor de Santa Bárbara sempre repleto de flores vermelhas destaca imagem em madeira policromada, provavelmente do século XVIII.
Hoje a santa ocupa o mesmo altar lateral da Igreja do Rosário dos Pretos, juntamente com Santo Antônio do Categeró.
Há quatro anos a Devoção de Santa Bárbara abrigada na Igreja do Rosário, vem cumprindo missas semanais as quartas-feiras, dia também consagrado a Oyá ou Iansã, orixá fortemente integrado a santa; santa que celebra os trovões, as ventanias e a cor vermelha. Outras devoções são também mantidas na mesma Igreja, como São Benedito e Santo Antônio do Categeró.
O povo de Santa Bárbara vem cuidando de maneira devota e integrada aos demais santos do Rosário dos Pretos de uma missão religiosa que vai ganhando maior adesão a cada ano, pois o povo de Iansã é formado por um povo que tem pressa.
Visto a comida do orixá, o acarajé, fritura, comida rápida, comida quente de um orixá/santa quente.

Quarta-feira é dia

Dia consagrado aos fiéis de Santa Bárbara e aos filhos e devotos de Iansã/Oyá é a quarta-feira. Esse dia da semana marca diferentes rituais mantenedores de memórias religiosas nos terreiros de candomblé. É o dia de oferecimento do amalá de Xangô. Xangô, marido mítico de Iansã, rei de Oyó, também senhor do fogo, do segredo desse elemento que circula e fundamenta diferentes imaginários afrodescendentes.
Xangô, o senhor que tem um apetite fantástico; aquele que de posse de sua gamela de madeira come ao mesmo tempo mais de mil quiabos.
Dendê, quiabo e pimentas fazem uma base gastronômica das comidas desse rei que é também orixá. Xangô e sua família, que ´pe formada por outros orixás, especialmente Oxum, Oba e Iansã, abastece a mitologia Iorubá com inúmeras histórias que relatam heroísmo, paixões, sexualidade, poder de deuses sobre a natureza e notadamente sobre os homens.
Características e humores humanos compõem as essências dos orixás, aproximando e intimizando comportamentos, maneiras de interpretar o mundo, de incluir os desejos e os conflitos da vida cotidiana aos divinos significados dos deuses orixás. Essa marcante humanidade é ânimo e sentimento que aproxima e inclui o sagrado não apenas pelos seus rigores de preservar regras e códigos de comportamentos, mas principalmente na compreensão das experiências do que é próprio ao homem: amor, medo, intriga, sexo, trabalho, concorrência profissional, paixão, vida e morte.
O orixá Iorubá assume seus papéis sagrados em profunda irmandade com o espírito e o sentimento terreal do que é próprio do homem.
Assim, Xangô, Oxum, Oba e Iansã fazem uma família, um sistema mitológico que é permanentemente atualizado, ganhando novos valores e representações dinâmicas perante a vida.
Tudo é cerimonialmente lembrado no terreiro oferecendo amalá para os orixás e também para os membros da comunidade e aqueles que visitam os santuários para homenagear Xangô e sua família. Aí está em destaque a mulher companheira, guerreira e sensual que é Iansã. Para Iansã dá-se acarajé, comida rápida, fritura de bolo de feijão-fradinho no azeite-de-dendê fervente. Também come quiabos, o tão popular caruru de Santa Bárbara e o orixá feminino também come do mesmo fogo que seu marido Xangô.
O acará é o fogo primordial representado na panela da comida de Xangô que é o ajerê. Em comendo do mesmo fogo, Iansã conhece os mistérios do marido e partilha o poder mitológico sobre esse grande elemento da vida e da transformação da própria vida.

Borboletas

As cabeças das mulheres do povo do santo, verdadeiramente coroadas com torços especiais, alvos, de pano bem engomado são destacadas com as pontas ou orelhas, afetivamente chamadas de borboletas. As partes de pé, geralmente arrematadas com renda de bico ou mesmo com bordados, richelieu, dizem da condição religiosa da mulher, anunciando ser então filha de orixá feminino, notadamente de Iansã.
As borboletas são as representações das asas, unindo então o sentido do movimento do animal identificado com o orixá dos ventos, das brisas; da moça que é vista no céu no final da tarde, quando esse mesmo céu ganha cores róseas, cores que identificam o orixá.

A fé no mercado

Dona do mercado, do tabuleiro, do ofício da baiana de acarajé é Iansã, integrada na fé e no sentimento afro-baiano a Santa Bárbara.
O mercado é um lugar da história da mulher africana e afrodescendente, em especial da mulher Nagô/Iorubá. Está no mercado a síntese do mundo e de tudo que a natureza pode oferecer de produtos, de objetos artesanais, comida, folhas e principalmente encontros. Pois, o mercado é um lugar de encontros, de reencontros, de estabelecer contatos, de viver as trocas, de organizar e marcar diferentes papéis sociais. Assim, o mercado é um lugar de experimentar tradições, de comunicar, de socializar, de aproximar a pessoa da sua história, de apontar e manter identidades.
Seguindo esses princípios, o Mercado de Santa Bárbara na Baixa dos Sapateiros, Salvador, traz essas memórias remotas africanas e atualiza outras memórias que fazem a dinâmica e o próprio ser social e econômico do mercado.
Está no Mercado de Santa Bárbara uma forte devoção religiosa a sua padroeira, merecendo culto diário em lugar, santuário, especialmente construído, sendo um espaço aberto a manifestações de pedidos e de agradecimentos à santa que para o imaginário popular é também orixá.
O santuário como é chamado pelos barraqueiros do Mercado ainda presta homenagem para Santo Antônio e São Jerônimo, santos da igreja, também próximos a Santa Bárbara, seguindo a interpretação popular de serem também orixás, respectivamente Ogum e Xangô, maridos míticos de Iansã. Assim, vê-se uma família de santos e de orixás que expressam suas histórias de deuses Iorubá, integrados e atuantes no cotidiano da cidade do São Salvador.
No santuário, no dia da santa, um ritual de candomblé angola, segue uma ordem convencional dos terreiros, começando com o padê de Exu, oferecendo farofas, em especial a de dendê, água e otim, cachaça, em seguida canta-se e dança-se para Inkossi, inquice da Nação Angola, próximo às características do orixá Ogum, orixá dos caminhos, das lutas, dos metais.
A grande festa funde-se com a festa de largo, com a visita do andor de Santa Bárbara, circulando pelos espaços do mercado, abençoando, integrando a presença da santa com o povo que vem louvar, comer, beber, dançar, enfim traduzir no corpo e com o corpo os temas principais da vida e da sexualidade, tão próximos, tão marcados pelo ser Bárbara, e pelo ser Iansã. É assim que o povo vê, crê, manifesta e autentica a sua fé.

Caruru

Momento de reunir para preparar, para produzir nas panelas e nos fogões e momento para partilhar, ampliar contatos com o mundo, com o que é sagrado oferecendo muito quiabo. Quiabo gostoso e temperado por mãos e corações que têm axé, que tem um amor plural de unir a santa e o orixá que domina principalmente as mulheres.
O caruru é um prato em si ou assume cada vez mais o significado de um cardápio. Caruru agrega além do prato principal feito de quiabos em rodelinhas, camarão seco, amendoim, castanha de caju, dendê e temperos; o xinxim de galinha, o vatapá, o abará, o acarajé, o arroz branco, além do acaçá branco e outros complementos.
Para Cosme, no tão tradicional Caruru de Cosme acrescenta-se ainda farofa de dendê, pipoca, feijão de azeite, feijão preto, ebô, cana-de-açúcar, ovos cozidos, queimados (balas).
A fama dos carurus está no número de quiabos utilizados. Então é comum ouvir-se: o caruru que eu ofereci foi de 10 mil quiabos, dando assim uma dimensão da grandeza do evento e de possíveis marcas ou estilos do fazer caruru para grandes grupos. É comida que rende, que une as pessoas, que celebra pelo gosto gostoso dos ingredientes esse sabor de Bahia africana, por isso Bahia mais brasileira, no mergulho gastronômico dos paladares caprichados e sofisticados das mulheres que cozinham. Pois, os elos entre as cozinhas dos terreiros de candomblé, territórios do mundo feminino se mantêm nas outras cozinhas, nas casas, na rua, fazendo caruru, tratando cerimonialmente cada quiabo.
Falando com Cid Teixeira, notável historiador das coisas da Bahia, trouxe algumas informações que ajudam a entender as festas de hoje, as devoções, as comidas e em síntese essa magnífica interação entre a vida e o sagrado.
Aponta Cid Teixeira para a variedade de carurus que se comia na Bahia no início do século XX. Caruru de diferentes ingredientes, inclusive o caruru de quiabo. Caruru uma comida feita de folha, de qui iôiô, de bertalha, de bredo de Santo Antônio, de azedinha de vinagreira. Aqui lembro da receita tradicional da cozinha afro-maranhense, o cuxá, um tipo de caruru, feito de folha, de vinagreira, recebendo ingredientes como o camarão seco, a pimenta e um novo acréscimo que é a farinha d’água; tipo de farinha de mandioca, misturando-se tudo no pilão, resultando em alimento pastoso e saboroso que é acompanhado de arroz branco e peixe frito.
De uma certa forma um prato muito próximo do efó, também prato de folha e temperos, destacando-se o azeite-de-dendê. Pratos sempre acompanhados de arroz branco, geralmente insosso, para pontuar o gosto temperado e colorido do próprio dendê.
Contudo no imaginário afro-baiano, o caruru ficou sacralizado pelo uso de quiabos, inclusive alguns inteiros, e que segundo o costume, aqueles de destes se servir deverá interpretar como um anúncio que o santo homenageado está pedindo para o próximo ano um novo caruru.
Oferecer caruru é uma obrigação religiosa, um pagamento de promessa, um bom motivo para reunir os amigos e assim celebrar em torno da comida.
Quase o mesmo que festa, caruru é um bom motivo para reunir amigos, devotos, familiares para juntos celebrarem datas pessoais ou datas mais coletivas e partilhadas como aquelas que avocam os santos populares, entre elas 4 de dezembro, dia da Moça, da Santa, da Bárbara, orixá feminino, Oyá ou Iansã.

 

 

Eparrei Bárbara
Foto instalação de Jorge Sabino

Procissão

Longa, barroca e coletiva dos santos mais populares da fé afro-baiana foi a procissão de Santa Bárbara vivida no dia 4 de dezembro de 2004.
Nascendo da Igreja do Rosário dos Pretos, o primeiro andor conduz Santo Antônio, santo que é também Ogum, orixá inaugurador como também o é Exu, anunciando os demais santos e andores.
Tantos santos da intimidade popular são lembrados nos andores repletos de flores: São Cosme e São Damião, São Roque, São Miguel, São Jerônimo, São Benedito, Nossa Senhora da Conceição, Nosso Senhor do Bonfim e culminando a série sagrada está Santa Bárbara, a grande homenageada da festa.
A procissão segue da Igreja do Rosário dos Pretos, Pelourinho, Ladeira da Praça, Quartel dos Bombeiros, Baixa do Sapateiro, mercado de Santa Bárbara, retornando ao Rosário.

Vermelho

A multidão é vermelha. Homens, mulheres e crianças vestindo roupas vermelhas em homenagem a santa. Pois o profundo tom encarnado identifica os fiéis, adeptos do tão popular culto a santa-mártir Bárbara.
Os encontros que antecedem a saída da procissão, hoje, do Rosário dos Pretos, igreja profundamente identificada à causa do povo do santo, reveladora de expressões religiosas assumidamente relacionais entre a fé no terreiro de candomblé e a fé perante o andor na procissão.
Essas maneiras, estratégias de lidar com o sagrado fazem os grandes ciclos devocionais da Bahia, mantendo convivências e conivências do ser católico e ser do santo, quer dizer: ter obrigações, iniciação no candomblé.
Remontam-se aos símbolos comuns que unem e apoiam as expressões desse sagrado ungido de africanidade e de resultados históricos e sociais de uma fluente e viva baianidade.
O vermelho, cor forte, que é sangue, que é fogo, que é também símbolo do que é vivo e remete-se à vida identifica o fiel, o filho de Santa Bárbara, também na maioria dos casos o filho de Iansã/Oyá, orixá bravo e veloz como o vento, o furor das tempestades, dos raios que rasgam os céus, das chuvas torrenciais, chuvas de verão, chuvas tropicais. Assim, formam-se temperamentos de um ser expressivo e destemido, pronto para agir nos momentos fortes e dramáticos da vida.
Santa Bárbara é santa das causas que envolvem fenômenos meteorológicos, de ações que exigem emoção, coragem; santa que é também padroeira dos bombeiros, dos soldados do fogo.
Novamente, vê-se o vermelho como a única cor possível de traduzir e de comunicar tanta paixão em fé que para os adeptos remove montanhas.
A fé da vida cotidiana culmina no tempo da festa, unindo no mesmo sentimento viva Bárbara e Eparrei Iansã!

 

 

Raul Lody

BrBdeB

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