Café e chá: uma autoetnografia

Muitas relações sociais e simbólicas acontecem ao redor das xícaras, que podem conter diferentes bebidas. A partir daí, muitos rituais de sociabilidades irão ocorrer para marcar laços que se abastecem à mesa. As bebidas promovem encontros que são argumentos para formar laços afetivos que fazem parte das expressões culturais que orientam os sentidos e os símbolos sociais.

E aqui, eu manifesto o meu entendimento de que as bebidas são verdadeiros alimentos.

Sem dúvida, as bebidas trazem muitos motivos dentro de uma sociedade que são reveladores de gênero, de papéis sociais, de identidade, porque cada tipo de bebida tem uma longa história dentro das suas representações culturais. Assim são experimentados diferentes processos de comensalidade como, por exemplo, uma de xícara de café é um argumento clássico para se iniciar os rituais sociais dos encontros e das parcerias; pois as bebidas têm essa vocação gastronômica de possibilitar maiores interações interpessoais.

Destaque para o café, essa bebida tão consumida no mundo, e que no caso brasileiro é uma marca do bem receber, porque oferecer uma xícara de café é uma verdadeira forma de acolhimento nas casas, ou mesmo nos estabelecimentos como bares, padarias, restaurantes e, em especial, nos ‘cafés’ enquanto ambientes especiais da promoção dos diferentes processos de se fazer e de servir café, para que se viva em cada xícara as mais diversas formas gastronômicas.

Tudo isso possibilita as experiências sensoriais, e principalmente interpessoais, já que o café é uma bebida consagrada para marcar apreciações e representações nos hábitos cotidianos, seja nos rituai de oferecimento, seja na crescente valorização gastronômica com os chamados cafés especiais.

No olhar brasileiro, o café ganha significados ampliados, pois se vive essa bebida, inicialmente, desde o cultivo até o cafezinho como um forte argumento de coesão familiar, de experiência lúdica e de interpretação gastronômica.
As minhas experiências com o café, nas suas mais diversas formas e sabores, trazem memórias familiares dos muitos rituais de interatividade e ludicidade no cotidiano. Passar um cafezinho, ou seja, fazer o café na hora, fresquinho, para um melhor aproveitamento do paladar, revela aroma e é o primeiro estímulo sensorial da apreciação dos perfumes exalados durante o processo de coar, e depois a apreciação gustativa , os diferentes sabores.

Assim, em pequenas doses, sempre em xícaras apropriadas, porque a estética do cafezinho é fundamental para entendimento da bebida. Tudo se inicia no reconhecimento visual de cada utensílio, e, dessa maneira, unem-se formas e sabores para um verdadeiro encontro visual com o paladar do café.

Nestes contextos, os utensílios não são apenas funcionais, eles são especialmente simbólicos. Destaco nesta autoetnografia uma verdadeira educação estética para a seleção das xícaras para o café, seja para o cafezinho ou seja para quantidades maiores desta bebida no café da manhã.

Sim! Xícaras de porcelana, porcelana muito fina, transparente, conhecida popularmente por casca de ovo. Xícaras que eram as mais apreciadas, e ideais, para conter o café. São xícaras de procedência oriental, especialmente do Japão e da China.

Mais tarde, entre as minhas escolhas, amplio minhas preferências estéticas para a porcelana Vista Alegre de procedência portuguesa. Tudo isso porque beber café é um ato muito complexo e repleto de significados. E, sem dúvida, deve-se cultivar a relação entre o belo, o prazer e o paladar.

 

café e chá - Brasil Bom de Boca
Foto Jorge Sabino

Muitos cafezinhos, no dia a dia, formavam os hábitos cotidianos na minha casa, vivia-se assim muitas opções de aproveitar, e de formar escolhas do sabor do café forte, tradicional , uma verdadeira identidade da casa. Essas memórias pessoais dos rituais domésticos de fazer e de oferecer o tão celebrado cafezinho, trazem os melhores momentos de aproximações e de cultivo das relações afetivas. E tudo acontecia ao redor da pequena xícara com a sua bebida simbólica, o café.

Para o café matinal, as xícaras são diferenciadas, são maiores, para poder portar uma maior quantidade de café, que se integra num ideal estético e funcional. E assim, no café da manhã, quase sempre o café chegava acompanhado do leite, numa mistura clássica chamada geralmente por ‘média’, que é também combinada com o pão com manteiga, um clássico.

Para se beber a ‘média’ nos estabelecimentos comerciais, geralmente nos bares e padarias, o café era misturado ao leite e servido, muito quente, num copo de vidro, geralmente no copo tipo americano, um tipo de utensílio tradicional e recorrente nos hábitos de beber, água, café, cerveja, cachaça, entre tantas outras bebidas. Beber o café ou a média, num copo americano, ainda integra um forte hábito brasileiro, que é reforçado no ato de adicionar bastante açúcar, numa expressão de identidade ancestral decorrente de uma verdadeira civilização do açúcar, da cana-de-açúcar.

Sem dúvida, no ampliado processo de gourmetização do café está a crescente valorização dos chamados cafés especiais. O consumo destes cafés especiais orientam que para uma melhor apreciação da bebida não seja indicado uso de nenhum dulcificante.

Bem, alguns aspectos relevantes da minha relação com o café apontam para um cultivo de uma verdadeira formação de hábitos, de reconhecimento, e da total identidade desta bebida. Sem dúvida, eu adoro beber café, comer preparações onde o café é um ingrediente principal, como tortas, sorvetes, e outras bebidas feitas a partir do café.

Nesta autoetnografia, onde trago o protagonismo do café, há também o chá na formação dos hábitos alimentares, e quero também observar que as chegadas do café e do chá são bem diferentes. O café já integrado na ampla tradição da casa, e o chá sendo especialmente olhado, e ampliado, enquanto infusões de diferentes ingredientes, que inicialmente chega como uma bebida de uso medicinal. Chá para acalmar, chá para dormir, chá para indisposições digestivas, entre tantas outras propriedades.

Trouxe o hábito de beber chá para o meu cotidiano. E, sem dúvida, ritualizei intencionalmente o ato de beber chá, por meio de chaleiras especiais e de uma variedade de utensílios para apreciar visualmente e olfativamente essa bebida. E assim, trazer cada aroma e sabor do chá para as mais profundas e especiais experiências deste ritual.
Integro ainda ao hábito de beber chá, os repertórios e os imaginários que remetam ao Oriente e, em especial, a China, ao Japão, ao Ceilão, a Índia, a Coreia, e tantos outros lugares que possam traduzir a produção e as características culturais, e especiais de terroir.

E tantas outras referências que individualizam cada xícara, e cada ritual na apreciação desta bebida. O chá amplia-se também na formação dos hábitos alimentares, e a enriquece com novas experiências, que dão a possibilidade de trazer o chá feito exclusivamente com as folhas de chá – Camellia sinensis. Assim inicia-se um novo processo no conhecimento e no aproveitamento gastronômico desta bebida servida na xícara, cerimonialmente servida na xícara.
Assim como o café, o chá também proporciona novas experiências de paladares, de odores, de sensações, de apreciação estética que nascem de interpretações mais complexas sobre o ato de beber a cultura e o seu significado.

Desse modo, cada tipo de bebida que é servida adequadamente tem um ritual para o seu consumo. Porque o ato de beber é um ato repleto de símbolos, e o chá, como o café, revela a sua ancestralidade, a sua história, os seus estilos, as suas identidades, e certamente o seu terroir.

Tudo isso se reflete nas relações interpessoais, que são influenciadas por estas duas bebidas; o café e o chá. E eu fui pesquisar para ampliar o meu olhar, e qualificar tanto um hábito quanto uma relação pessoal, como consumidor do café e do chá; e desenvolver preferências, e interpretações, para os diferentes sabores.

E assim, o café e o chá fazem do meu cotidiano uma crescente busca de aromas e sabores, de novas procedências, de novas possibilidades de interpretações do terroir, do cultivo, do artesanato; da história; na busca por utensílios que possam qualificar cada sabor. Eu sou, sem dúvida, um adepto do epicurismo, assumidamente.

 

 

 

RAUL LODY

BrBdeB

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