“Dar pro santo”

Nos muitos e diferentes hábitos de comer e de beber fazem parte das nossas tradições alimentares brasileiras, e que revelam estilos e tendências de manifestar tanto diversidade quanto singularidade, e assim uma identidade.

São muitas as relações que se apresentam durante o consumo dos alimentos, das comidas e bebidas, como também são muitas as formas de transmitir significados que são reveladores de culturas e de civilizações que formam os cenários e os momentos sociais de comer e de beber.

Nutrir, alimentar, ou mesmo saciar a sede com um copo d’água, integram momentos ritualizados que garantem um entendimento pleno do que é o ato de comer e o ato de beber, conforme a cultura do lugar.

As percepções sensoriais dos sabores, e os prazeres suscitados por ele, também acionam diferentes processos que se comunicam com o lugar em que se come e se bebe.

Os momentos da alimentação se comunicam, e vão além da boca, e além do corpo, porque as relações com o que se come e com o que se bebe são profundamente memoriais. Os momentos da alimentação são acionadores de ancestralidade, são propiciadores de contatos que aproximam o homem do que é sagrado, do que é mítico, do que é devocional.

E são as memórias que orientam e que possibilitam repetir, ritualmente, cada gesto; mesmo que ainda não se esteja consciente do seu significado; porém repetir é preciso, porque é protocolar; ainda, a memória dá uma espécie de autorização daquele momento do comer e do beber.

Também, os diversos rituais integrados à amplitude e à complexidade da alimentação são normatizadores por condutas e por modos de comer e beber, que localizam a pessoa e o seu momento social. Estes momentos funcionais fazem parte de uma repetição da forma, de sequências ritualizadas diante de um prato de comida ou diante de um copo de bebida.

Por tudo isso, uma refeição só será completa se todos os códigos simbolizados e próprios para cada alimento, para cada receita ou, ainda, relacionados aos objetos e utensílios à mesa, sobre uma esteira ou uma folha de bananeira, forem experimentados e vividos na sua intencionalidade plena, numa espécie de exercício de pertencimento.

Viver estes rituais também constroem a pessoa e o seu lugar social no grupo, na comunidade; nos costumes que marcam estas pessoas e suas sociedades.

Assim, afirmam-se as identidades e as diferenças nas muitas maneiras de se relacionar com as comidas e com as bebidas, porque cada forma de consumir não é apenas consumir, pois nos alimentamos de símbolos, que dão a esses produtos os seus mais verdadeiros significados.

Nas nossas tradições de matriz africana, há o costume e o sentido ritual de colocar água no chão, em quantidades diversas, para assim acionar os contatos como os mitos fundadores, com a ancestralidade; e ainda estabelecer falas simbólicas com orixás. São verdadeiros rituais de alimentar o chão. Tudo é intencional, funcional, e cumpre protocolos de diferentes liturgias que se integram aos complexos rituais ampliados no exercício da vida devocional.

Falar simbolicamente com a água depositada no chão, geralmente água guardada na quartinha, utilitário feito de barro, que faz um encontro da pessoa com o sagrado, para cumprir um momento de respeito; e memorialmente lembrar uma espécie de forma apaziguadora, porque a água é apaziguadora. E assim, vê-se que o entendimento de comer e de beber estão também nos lugares, nos objetos, na natureza; e não unicamente na boca ou no corpo da pessoa.

Os rituais de sociabilidades trazem diferentes ambientes, especialmente das bebidas, bares, botequins, bancas de feiras e de mercados, onde se vigora e se expõe, até hoje, um ritual aparentemente funcional; e, profundamente articulador de uma memória religiosa e, em especial, com a memória da ancestralidade.

Refiro-me ao oferecimento de bebidas servidas em copo e que são depositadas no chão antes do comensal bebê-la, e comumente se diz “vou dar pro santo”.

Contudo, o que é oferecido para o santo é convencionalmente uma bebida forte, com destaque para a nossa cachaça, para os diferentes tipos de cachaça; ou outra bebida forte que esteja agregada ao imaginário de que uma bebida forte é aquela com um alto teor alcoólico, e isto marca um lugar masculino.

Além, da cachaça, que é a bebida dominante para esse ritual, poderá acontecer também com o rum, a vodca, o ‘cinzano’, ou com outras diferentes bebidas ainda marcadas pelo seu alto teor alcoólico.

“Dar pro santo” é uma atitude, uma ação com uma certa ludicidade, um momento de reverência e de verdadeiro culto do mundo masculino, porque estes condicionamentos de bebidas fortes são relacionados às pessoas fortes; ou bebidas fortes para ancestrais ou divindades também fortes que são acionadas, reverenciadas, com o oferecimento do primeiro gole dado ao chão, antes de se beber, porque o santo também bebe.

Assim, nestes rituais de “dar pro santo”, pode-se também entender como uma espécie de permissão para se iniciar o ato de beber, uma autorização sagrada. Ainda, nestas interpretações, o santo bebe com aquele que ofereceu o primeiro gole da bebida, como um companheiro de comensalidade; pois, o ato ritualizado de colocar o primeiro gole dessa bebida forte no chão é a afirmação de que o santo e a terra bebem, bebem antes do homem.

 

 

Raul Lody

BrBdeB

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