“O prazer da mesa pertence a todas as épocas, todas as condições, todos os países e todos os dias (…).”
(Savarin)
Os ingredientes, com os seus mais diversos aspectos formais e funcionais para alimentação, trazem muitos significados que se agregam ao entendimento pleno do ato da alimentação. Esse ato da alimentação em Savarin marca também um entendimento com muitas conexões históricas, sociais e culturais, para a construção de um olhar amplo e complexo sobre o estabelecimento dos conceitos da gastronomia.
A obra clássica de Brillat Savarin “A Fisiologia do Gosto, ou meditações sobre gastronomia transcendental”, que é o título original deste clássico, marca e inaugura um processo de interpretação sobre as relações entre a comida e a sociedade, a comida e o meio ambiente, a comida e o prazer da alimentação. Todos estes aspectos das múltiplas relações da pessoa com a comida, quando reunidas, pode-se dizer que é a construção de uma base histórica do que se entende por gastronomia em Savarin.
Ainda, pode-se agregar a este processo profundamente criativo, questões referentes a arte, pois para Savarin a gastronomia é um conjunto de expressões e linguagens que oferece possibilidades e experimentações que vão além do ato da nutrição, ou apenas do ato biossocial da alimentação.
Sem dúvida, é um processo de humanização e de valorização das relações homem e cultura por meio dos muitos rituais sociais da alimentação e seus significados.
Assim, cada alimento, para Savarin, terá um sentido próprio dentro dos cenários das muitas possibilidades gastronômicas dos sistemas alimentares já estabelecidos na França, e com os novos sistemas alimentares em processos de descobertas e de experimentações. Nestes cenários está o café, uma bebida historicamente já consagrada por civilizações do Oriente médio.
Savarin encontra, e descobre, o café na França, visto que esta bebida começa a sua disseminação na Europa em meados do século XVII. Uma bebida procedente do continente africano, da Etiópia, que ganha primeiro a península arábica, local em que se estabelece por muito tempo antes de sair, e daí seguir para o mundo.
Tão forte é o café nas tradições árabes que ele chegou a ser conhecido como qah’wa – vinho em árabe. O café chega ao Império Otomano, onde marca não apenas hábitos, mas também técnicas de preparo. Com uma designação ampla de café árabe, o pó do café era depositado num copo ou outro utensílio em que se adicionava água quente, e então se aguardava que esta mistura ficasse assentada, ou seja, que o pó de café se concentrasse na base do recipiente; e aí a bebida estaria pronta para o consumo.
Atribui-se a chegada do café na Europa por Veneza, e depois pela França, ainda no século XVII, por meio dos embaixadores da Turquia.
Notáveis na França, especialmente em Paris, o Café Procope e o Café de La Régence, espaços já consagrados para o cultivo dessa bebida, o café enquanto uma bebida de forte conotação socializadora. Desta maneira, a formação dos hábitos de reunir homens e mulheres para encontros, conversas, entorno das xícaras de café.
Muitos atribuem a estes ambientes que fortalecem as relações sociais, que possibilitam processos verdadeiramente democráticos, pelos muitos e diferentes encontros com diferentes representações das populações, locais em que possivelmente foram considerados como estimuladores do pensamento pela revolução francesa.
Certamente com todas essas questões formadoras de hábitos, numa verdadeira expansão do café, traz para o olhar gastronómico de Savarin novos aspectos que se integram a complexidade do ato da alimentação, onde se inclui os entendimentos sobre as comidas e as bebidas; porque cada comida e cada bebida tem um sentido, um significado próprio; e assim são integradas nas histórias pessoais, nas histórias das sociedades.
Ainda, o café vem trazer uma marca de lugar, de multiculturalidade de um ingrediente formador de novos hábitos alimentares, além dos seus territórios originais, ele ganha novos sentidos e significados no Ocidente, e vem marcar este campo em construção que é gastronomia em Savarin.
As primeiras considerações de Savarin sobre o café está na história, ou melhor, na história mítica do aparecimento do fruto do cafeeiro, enquanto um fruto estimulante, e a partir da tradição oral que conta sobre um pastor e suas cabras numa região da Etiópia, no continente africano, que conta que quando as cabras comem os frutos elas mudam de comportamento, isto faz com que o pastor faça alguns experimentos com esse fruto, assim se atribuiu o início do seu uso, do seu consumo também enquanto uma bebida.
Hoje o café é a segunda bebida mais consumida no mundo, sendo a água primeira bebida mais consumida.
Diz Savarin:
“Os turcos, que são nossos mestres no assunto, não empregam moinho para triturar o café; esmagam em almofarizes com pilões de madeira; e, quando estes instrumentos foram empregados por muito tempo para essa finalidade, tornam-se valiosos e vendem-se alto preço.
Por várias razões, incumbia-me verificar se havia algumas diferenças boas nos resultados, e qual dos dois métodos era preferido.
Assim, torrei com cuidado meio quilo de puro moca; separei-o em duas porções iguais. Sendo que uma foi moída e a outra pilada a maneira turca.
Preparei o café com ambos os pós; cada porção tinha o mesmo peso; e despejei em cada uma a mesma quantidade de água fervente, agindo em tudo com igualdade perfeita.
Degustei os dois cafés e o estudo mede a apreciação dos entendidos. A opinião unânime foi que o café resultante do pó pilado era evidentemente superior ao do que fora moído”.
Neste entendimento complexo e diverso sobre a comida e a bebida, e de como os muitos rituais sociais da alimentação afirmam os cardápios do cotidiano, da festa e da religiosidade, Savarin dá ao café um conjunto de significados que orienta toda a sua obra inaugural para a construção do campo da gastronomia, que é firmada na fisiologia do gosto.
Savarin, na sua análise e na sua busca pelos sabores do café, detalha as diferentes tecnologias de preparo desta bebida, busca o entendimento de que as técnicas culinárias são fundamentais para a realização de uma bebida e de uma comida. Certamente o sabor, o gosto, a formação do paladar, está fundamentado no preparo combinado à qualidade do ingrediente.
Assim, as considerações de Savarin sobre o hábito de beber café, e como este hábito integra-se às atitudes e aos diferentes comportamentos intelectuais e sociais dessa época, marca esta bebida que se amplia nas muitas relações sociais.
Diz Savarin:
“Voltaire e Buffon tomavam muito café, talvez devessem aí esse hábito, o primeiro, a clareza admirável que se observa nas suas obras, por segundo, a harmonia entusiástica de seu estilo. É evidente que várias páginas dos Tratados sobre um homem, o cão, o tigre, o leão e o cavalo foram escritos no estado de exaltação cerebral extraordinária”.
Coerente a obra Fisiologia do Gosto, Savarin busca as conexões possíveis da época sobre as comidas e as bebidas que atuam, determinam, transformam comportamentos por questões fisiológicas. Este entendimento de Savarin é marcante no seu clássico, que em 2025 celebra 200 anos a sua primeira edição.
RAUL LODY