Uma orientação estética integra o olhar de Gilberto Freyre perante o imaginário da natureza representações da cultura, enquanto testemunhos que nascem das relações sociais.
Nestes cenários vê-se emblematicamente a cana-de-açúcar convivendo com outras ocupações de uma botânica mundializada – contatos entre o ocidente e o oriente pela mão do homem português.
As rotas de Diogo Cão (1482), Bartolomeu Dias (1487), Vasco da Gama (1497 e 1498), Gaspar Corte Real (1500), Pedro Álvares Cabral (1500), Francisco Serrão (1512) e Fernão de Magalhães (1519 e 1521) fazem os contatos, descobrem e difundem culturas, introduzem novos hábitos de ver, de ser, de crer, transportam frutas, espécies vegetais diversas, intercambiam os continentes, aproximam os homens pelas diferenças.
Fruto desses contatos e de experiências do ato de colonizar é o abrasileiramento de costumes, tradições e organizações nos estilos de tratar conviver e adaptar civilizações e fundar o jeito de ser brasileiro. Certamente essa é a rota preferencial de Gilberto Freyre para traduzir o Nordeste, Pernambuco, Recife – o Brasil.
A pesquisa de campo, o estar em campo, enquanto maneira de fazer sociologia e antropologia e, no caso, fazer ecologia, reflete forte influência de Franz Boas, anti-evolucionista e indicador de vertentes culturais para o entendimento complexo do homem e de sua sociedade.
Os jeitos já nacionais, regionalmente nordestinos, são trabalhados como soluções que indicam formação de identidades, de padrões culturais, de encarar e se relacionar com o mundo natural. São assim vistas, como avisa Gilberto, chegadas etnoculturais do luso, do africano, dos relacionamentos com os autóctones. De qualquer forma há uma sinalização de amor à terra.
As peculiaridades da região Nordeste e as destinações naturais do litoral, zona da mata, agreste e sertão mostram diferentes ocupações num diálogo permanente entre o sol e a água. Em visão ancestral e mitológica.
A morfologia botânica, os animais, arquiteturas que pontuam a mata atlântica, relações e representações étnicas no trato com a natureza são reveladores de soluções estéticas profundamente integradas com a vida tropical. Há um reconhecimento do sol – luz dominante que escolhe cores primárias -, juntamente com o branco para sinalizar e conviver com o verde dos canaviais, dos jardins-pomares com ruas arborizadas, com centenárias gameleiras.
“Sol agressivo este meu sol do Recife. Vejo-o quase esbofetear os estrangeiros, tal a intensidade da luz e de calor. (…)
Só quem goste de sol, vibre com o sol, sinta com o sol, pode verdadeiramente sentir, amar e compreender o trópico.”
(Gilberto Freyre)
O verde circundante às casas, os jardins-florestais ainda vistos no Recife e Olinda são casos exemplares de concepções, de estética e urbanismo em prol da humanização da vida nas cidades.
“Conheci uma negra velha que toda tarde conversava com uma jaqueira como se conversasse com uma pessoa íntima.”
(Gilberto Freyre)
A árvore é um monumento verde; algumas são sagradas e, assim, parte da natureza é sacralizada pelo homem, atribuindo funções de deuses a certos espécimes botânicos.
A relação homem-árvore é ainda mantida em terreiros do Recife como o Sítio – Terreiro de Pai Adão -, modelo do Nagô tradicional, através de magnífica gameleira, que representa orixás e ancestrais do terreiro. É telúrico o sentimento em relação ao verde e ainda mais ao verde sagrado, o que categoriza e aciona uma consciência paisagística, eminentemente estética e cultural.
Vale destacar que a ecologia regional foi enfática e cientificamente tratada por Gilberto Freyre, em especial em Nordeste – texto atualíssimo que oferece aos ecólogos meios e informações orientadoras da implementação de políticas e procedimentos valorativos do homem, da natureza e da região.
Conviver com o particular, o regional, o nacional e internacional foi um caminho também escolhido por Gilberto para relativizar e ao mesmo tempo valorizar o Nordeste e o homem tropical.
O entorno tropical – luminosidade, clima, vegetação, hábitos, roteiros e ruas, o litoral, os rios, os tipos humanos, cores da natureza e dos processamentos vindos das mãos do homem integram a construção do ver, que não se isola do ouvir, do sentir, do perceber globalmente direções e soluções da região.
O sentimento humanista orienta para o entendimento do que é viver no Trópico. É a geração de um método, de um caminho teórico e conceitual construído por Gilberto, daí a Tropicologia.
Há na Tropicologia uma proposta também estética. São escolhas, tipos, cores, produtos, alimentos, roupas entre outros símbolos que apontam das convivências e conivências de estar sob o sol, o sol dominante, o sol que indica comportamentos e maneiras de ser.
Por exemplo: é estética a valorização do coco – um símbolo tropical, símbolo também da cidade do Recife. Assim, Gilberto defende o coco enquanto um marco das relações entre o ocidente e o oriente, supondo-se de sua origem, a Índia.
“O próprio coco verde é aqui considerado tão vergonhoso como a gameleira, que os estetas municipais vêm substituindo pelos ficus benjamin, quando a arborização que as nossas ruas, parques e jardins pedem é a das boas árvores matriarcais da terra ou aqui já inteiramente aclimatadas: pau d’arco, mangueira, jambeiro, palmeira, gameleira, jaqueira, jacarandá.”
(Gilberto Freyre)
A ecologia situada na compreensão regional e na harmonia cultural do Nordeste também expressa um valor estético de convivências e de preservação às espécies nativas e outras trazidas da Ásia, da África e da Europa.
Certamente os cuidados biológicos, de preservação, manutenção de espécies, criação de áreas de proteção, políticas públicas e ações originais de diferentes segmentos da sociedade civil organizada têm compreensão plena e plural da ecologia, diga-se ecologia integrada a cultura, talvez melhor dizendo uma busca pela etno-ecologia – uma maneira mais sensível de viver e entender a natureza.
Em 1937, em língua portuguesa, Ecologia é o grande tema que Gilberto optou por falar, criticar e alertar sobre questões, hoje, de força e expressão contemporânea. O título: Nordeste: aspectos da influência da cana sobre a vida e a paisagem do Nordeste do Brasil já revela as intenções e os caminhos percorridos e vivenciados pelo autor.
As transformações do meio ambiente. Estilos de colonização, de formação da vida social brasileira. Componentes históricos e antropológicos unem-se em preocupações dominantes sobre a Ecologia.
As diferentes simbolizações do homem no meio ambiente, escolhas e tratamentos estéticos para os materiais e usos no cotidiano, na festa e em outros rituais servem para unir e também selecionar contatos com o mundo verde, a natureza.
Certamente para Gilberto a pitangueira assumiu um valor quase heráldico para uma relação biológica e estética. A pitangueira, Eugenia Pitanga, é uma espécie marcante do nosso litoral, conhecida pelo fruto avermelhado e pelo aroma característico de suas folhas, que têm diferentes usos em nossa cultura.
O conhaque de pitanga, a folha, o fruto é o conjunto que traz uma escolha e uma interpretação particularíssima da natureza por Gilberto.
O conceito e a vivência num cenário formado pela natureza representada em sítio, Sítio Ecológico é o atestado da prática cotidiana de Gilberto, hoje mantida pela Fundação Gilberto Freyre.
O acervo verde é constituído, principalmente, por cajueiros, cajazeiros, açaizeiros, pitombeiras, oitizeiros da praia, pitangueiras, jaqueiras, mangueiras, dendezeiros, macaibeiras, acácias-grandes, palmeiras imperiais, goiabeiras, flamboyants, juazeiros, viuvinhas, coqueiros, seringuelas que servem de abrigo e alimento para canários, sanhaços, beija-flores, bem-te-vis, sabiás, ratos silvestres, saguis, lagartos-teju, camaleões, calangos, entre outros que vivem ou passam pelo ambiente vizinho de um pedaço de Mata Atlântica e frontal ao Capibaribe.
Ninguém melhor do que Gilberto para introduzir histórica e culturalmente o conceito de ecologia no Brasil.
RAUL LODY
Nota: este texto integrou as minhas conferências na ECO 92, quando representei a Fundação Gilberto Freyre.