Ibérico e Nordestino. Os gostos da terra

Uma cozinha armorial

 

A potência cultural do Nordeste possibilita um amplo movimento estético que valoriza as memórias ancestrais, os repertórios da arte de expressão popular; os saberes tradicionais dos ofícios de poeta, de cordelista, de xilógrafo; de cantadores de romance, de dançantes do cavalo marinho, de rabequeiro; de boleira, de queijeiro, de criador de bode e de cabra. E tudo isto se fundamenta num sentimento de pertença, que se consagrou numa linguagem chamada como Armorial que, no nosso caso, nasce a partir da base ibérica e Magrebe.

“A Arte Armorial brasileira é aquela que tem como traço comum principal a ligação com o espírito mágico dos “folhetos” do Romanceiro Popular do Nordeste, com a música de viola, rabeca e pífano, que acompanha seus cantores, e com a xilogravura que ilustra suas capas (…)”.
(Ariano Suassuna)

A Arte Armorial se expressa especialmente na literatura e na dramaturgia, espaços ideológicos que recuperam um imaginário medieval. Contudo, o armorial passou a estar presente nas narrativas da nossa arte tradicional e popular.

Nestes cenários, destaque para a rabeca e o seu repertório musical, que traz sonoridades medievais do Magrebe. É um instrumento musical construtor de um estilo e de uma estética armorial.

Os imaginários sociais contemporâneos revelam e possibilitam muitas e diferentes leituras sobre os símbolos que estão nas memórias arcaicas das civilizações e povos.

A nossa arte popular integra-se nestes imaginários estéticos de modelos medievais, que permanecem em muitas das realizações formais dos mestres de ofício.

Mestres consagrados da arte popular, mantenedores de saberes e de produtos tradicionais que ganham significados sempre atualizados. Exemplo é a flor-de-lis, que é um elemento visual presente nas roupas de couro dos vaqueiros nordestinos, uma permanência visual que traz este elemento, que é o mais recorrente da iconografia heráldica.

A flor-de-lis é marcante na revelação da pureza, da lealdade, da bondade. E estas são valores fundamentais nos contextos heroicos dos cavaleiros medievais, os Cruzados que propagavam a fé cristã.
Presente “nos encourados”, nas roupas de couros dos vaqueiros do Nordeste, a flor-de-lis é um elemento visual e estético, normalmente aplicado nos chapéus de couro.

Assim, este símbolo permanece como um valor agregado ao trabalho, e ao também ofício do vaqueiro, e mantém um elo de formalismo simbólico com os “cavaleiros medievais”, cavaleiros no Trópico, nas ensolaradas caatingas.

O armorial recorre as memórias ancestrais ibéricas, num entendimento estético e patrimonial, quando se pode buscar dentro desta estética a gastronomia.

Esse entendimento amplia o olhar e o valor do que armorial, seja nas receitas, nas técnicas artesanais culinárias, na estética dos pratos, e nos rituais sociais da alimentação, que surgem com uma expressão heráldica.

São verdadeiras civilizações que se apresentam na identidade sertaneja do vestir, do falar, mas especialmente do comer. Assim, há as civilizações: do bode e da cabra; do boi; da cana de açúcar; do caju; da mandioca; e do milho.

Destaque para alguns alimentos como: leite, coalhada, queijos, carnes secas e salgadas; as vísceras e o sangue para as cabidelas; os temperos como o gergelim, o cravo, a canela, a pimenta do reino, o cominho; a rapadura, a puba, o mel de engenho, o alfenim; as farinhas, o cuscuz; os doces de frutas.

São acervos que expressam um sentimento armorial por meio destes alimentos simbólicos, destas comidas brasonadas que trazem as cores telúricas do Nordeste, numa gastronomia firmada no cotidiano e nas festas de fé.

Assim, vive-se um sentido heráldico dominante quando se recuperam os símbolos, os mitos, as cores e os temas, que reafirmam os elos patrimoniais e históricos com um ‘sonhado’ Nordeste medieval, que está encarnado nas muitas manifestações da arte, e aí está a comida.

Todas as expressões da cultura são funcionais e simbólicas, e se fazem viver nas sonoridades, na dança, no mito, na gravura, na comida, e em todas as expressões que testemunham a memória, a ancestralidade; e tudo isso faz parte de um sentimento Armorial.

 

RAUL LODY.

 

BrBdeB

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