Os alimentos em Iracema de José de Alencar

Sobre Iracema de José de Alencar, venho olhar a construção do personagem pela interpretação da comida e da bebida em sistemas culinários formadores do tipo e do seu lugar simbólico no enredo do romance.

Sem dúvida, a comida e tudo que ela representa, constitui-se em um dos nichos mais importantes na construção das identidades dos indivíduos, dos seus grupos, das suas comunidades, das suas regiões, das suas civilizações.

O olhar idealizado sobre o indígena em contextos românticos aponta para a natureza, matas, animais e aspectos de um sonho gentil que é marcado por referências etnográficas, enquanto espaços privilegiados para as cenas e desempenhos dos personagens.

Uma estética dominante nasce dos elementos da natureza e como alguns desses elementos passam a gerar sociabilidades por meio dos rituais de fazer e de servir comida.

Na primeira descrição de Iracema a doçura do mel qualifica os lábios da virgem e assim muitas outras referências chegam para identificar e formar os significados das relações homem-natureza. Com destaque o lugar social de Iracema, enquanto guardiã e conhecedora da jurema, bebida a base da jurema, nome vulgar da espécie conhecida como mimosa hostilis. É um ingrediente de uma bebida que faz sonhar, que possibilita contatos mágicos, abre falas simbólicas penetrando nas emoções dos espíritos.

A jurema enquanto uma bebida-ritual é celebrada em muitas manifestações sociorreligiosas chamadas de candomblé de caboclo, no Recôncavo da Bahia, e em outras formas de interpretar e de trazer o imaginário sacralizado do indígena, ainda no Nordeste, e em outras regiões.

No prólogo da primeira edição, José de Alencar constrói uma cena de sociabilidades, de referências de gênero e de papéis hierarquizados tendo no buriti o tema principal.

Os meninos brincam na sombra do outão, com pequenos ossos de reses, que figuram a boiada. Era assim que eu brincava, há quantos anos, em outro sítio, não muito distante do seu A dona da casa, terna e incansável, manda abrir o coco verde, ou prepara o saboroso creme do buriti para refrigerar o esposo, que há pouco recolheu de sua excursão pelo sítio, e agora repousa embalando-se na macia e cômoda rede.

No capítulo II Iracema é descrita, quase mimeticamente como a natureza.

Iracema, a virgem dos lábios de mel, que tinha os cabelos mais negros que a asa da graúna, e mais longos que seu talhe de palmeira.

 

Em seguida o relato de uma refeição:

Iracema acendeu o fogo da hospitalidade; e trouxe o que havia de provisões para satisfazer a fome e a sede: trouxe o resto da caça, a farinha-d’água, os frutos silvestres, os favos de mel, o vinho de caju e ananás.
Depois a virgem entrou com a igaçaba, que na fonte próxima enchera de água fresca para lavar o rosto e as mãos do estrangeiro.
Quando o guerreiro terminou a refeição, o velho pajé apagou o cachimbo e falou:
– Viestes?

 

Então Iracema é apresentada como a guardiã da jurema, marcando seu profundo vínculo com Tupã.

– Estrangeiro, Iracema não pode ser tua serva. É ela que guarda o segredo da jurema e o mistério do sonho. Sua mão fabrica para o pajé a bebida de Tupã.

Jurema: árvore meã, de folhagem espessa; dá um fruto excessivamente amargo, de cheiro acre, do qual, juntamente com as folhas e outros ingredientes, preparavam os selvagens uma bebida, que tinha o efeito do haxixe, de produzir sonhos tão vivos e intensos, que a pessoa sentia com delícias e como se fossem realidade as alucinações agradáveis da fantasia excitada pelo narcótico. A fabricação desse licor era um segredo, explorado pelos pajés, em proveito de sua influência. Jurema é composto de ju – espinho, e rema – cheiro desagradável.

 

Amplia-se a compreensão de descrições da mata para a construção de outros tipos indígenas.

– Tupã deu à grande nação tabajara toda esta terra. Nós guardamos as serras, donde manam os córregos, com os frescos ipus onde crescem a maniva e o algodão; e abandonamos ao bárbaro potiguara, comedor de camarão (…)

Potiguara: comedor de camarão, de poty e uara. Nome que por desprezo davam os inimigos aos pitiguaras, que habitavam as praias e vivam em grande parte de pesca. Este nome, dão alguns escritores aos pitiguaras, porque o receberam de seus inimigos.

 

Alimentos, ingredientes e processos culinários são apontados no texto de José de Alencar.

Enquanto Caubi pendurava no fumeiro as peças de caça, Iracema colheu sua alva rede de algodão com franjas de penas e acomodou-a dentro do uru de palha trançada.

 

Novamente a estética das comidas apoiando e identificando Iracema que é certamente reforçada na sua vocação de ser também um alimento carnal, fruto do desejo sexualizado pelo estrangeiro e pelos indígenas.

Os róseos lábios da virgem não se abriram mais para que ela colhesse entre eles a polpa da fruta ou a papa do milho verde; nem a doce mão a afagara uma só vez, alisando a dourada penugem da cabeça.

– O coração de Iracema está como o abati na água do rio. Ninguém fará mal ao guerreiro branco na cabana de Araquém.

 

Na busca de uma etnografia de contextualização o cauim assume o exemplo de bebida comunal, festiva e também preparatória, tão preparatória como a jurema. Bebida de função socializadora.

O cauim, de ka’wi, bebida fermentada entre os Tupinambás, ou caguy entre os Guaranis, especialmente na faixa litorânea brasileira. É bebida fermentada., feita por meio da mastigação e salivação da mandioca, o que ajuda a transformar o amido em açúcar. O cauim faz parte de uma longa lista de fermentados de amiláceos insalivados, onde constam também tiquara, chibé, caribe e jacuba. O último termo passou a designar qualquer farinha de mandioca (ou de milho) em água fria.

Estes fermentados insalivados distinguem-se das bebidas do gênero paiauaru ou pajauaru, fermentados produzidos através da sacarificação da mandioca pela ação de fungos, com uso da técnica dos beijus mofados diluídos em água para fermentar ou da mandioca puba, mergulhada na água dos rios para depois ser utilizada na feitura de bolos.

O ritual de preparo feminino do cauim, com as mais belas jovens encarregadas da mastigação da mandioca, foi descrito, entre outros, pelo mais famoso prisioneiro dos Tupinambás, o alemão Hans Staden, no século XVI. O cronista Simão de Vasconcelos listou, no século XVII, 32 tipos de cauim, feitos de aipim, banana, caju, milho, abacaxi, batata, mel, jenipapo, alfarroba, taioba, abóbora, mangaba, entre outras matérias-primas. O cauim de mandioca brava e de batata-doce era chamado caracu. Noelli e Brochado (1998) calculam que existam mais de 140 tipos de cauim feitos apenas de frutas.

Os guerreiros tabajaras, excitados com as copiosas libações do espumante cauim, se inflamam à voz de Irapuã que tantas vezes os guiou ao combate, quantas à vitória.

 

O homem caçador, provedor, estabelece vínculos com o sagrado.

Cada guerreiro que chega depõe a seus pés uma oferenda a Tupã. Traz um a suculenta caça; outro a farinha-d’água; aquele o saboroso piracém da traíra.

 

Seguem-se as ofertas, agora a jurema.

Vem Iracema com a igaçaba cheia do verde licor. Araquém decreta os sonhos a cada guerreiro e distribui o vinho da jurema, que transporta ao céu o valente tabajara.

 

Caça, bebida e tecnologias tradicionais no preparo das carnes com o bucã.

Bucã: significa uma espécie de grelha que os selvagens faziam para assar a caça; daí vem o verbo francês boucaner. A palavra provém da língua tupi ou guarani.

 

Agora um sinal do Ceará, um símbolo gastronômico que vem do caju, fruta emblemática, nativa, telúrica que integra o imaginário do paraíso tropical.

Cajueiro – Anarcadium Occidentale L.: alguns tipos: cajueiro bravo, cajueiro do campo, caju-mirim, caju-rasteiro, cajurana, marajoara, sambaiba, caimbé entre outros.

Poti pôs a mão no crânio do ancião e conheceu que era finado; o guerreiro morrera de velhice. Então o chefe pitiguara entoou o canto da morte; e foi à cabana buscar o camucim que transbordava com as castanhas do caju. Martim contou cinco vezes cinco mãos.

 

Retomam-se os cenários de uma mata repleta de caças, frutas, água e peixes, um rico acervo de alimentos.

Além da barra da Piroquara, estava mais entrada para as serras a tribo dos caçadores. Eles ocupavam as margens do Soipé, cobertas de matas, onde os veados, as gordas pacas e os macios jacus abundavam. Assim os habitadores dessas margens lhes deram o nome de país da caça.

Piroquara de pira – peixe e coara – toca.

 

E entre os alimentos de maior notoriedade americana e indígena é o milho.

A alegria ainda morou na cabana, todo o tempo que as espigas de milho levaram a amarelecer.

 

Outro símbolo da mata, da terra, do que é nativo é o maracujá, também conhecido como a fruta da paixão.

Maracujá, do gênero Passiflora, planta americana. Nomes: maracujá-das-capoeiras, maracujá-vermelho, maracujá-de-cheiro, maracujá-de-cobra, maracujá-de-estalo, maracujá-grande, maracujá-mirim, maracujá-pintado, maracujá-suspiro entre muitos outros.

Martim sorriu; e, quebrando um ramo do maracujá, a flor da lembrança, o entrelaçou na haste da seta, e partir enfim seguido por Poti.

 

Agora a pitanga, vermelho em tupi, outra fruta apoiando a mimese entre o homem e a natureza.

Seu lábio gazeou um canto. A jandaia, abrindo as asas, esvoaçou-lhe em torno e pousou no ombro. Alongando fagueira o colo, com o negro bico alisou-lhe os cabelos e beliscou a boca mimosa e vermelha como a pitanga.

 

A terra, o lugar, terras do Ceará.

O imbu, filho da serra, se nasce na várzea porque o vento ou as aves trouxeram a semente, vinga, achando boa terra e fresca sombra; talvez um dia cope a verde folhagem e enflore. Mas basta um sopro do mar para tudo murchar. As folhas lastram o chão; as flores, lava-as a brisa.

Imbu: fruta da Serra do Araripe que não vem no litoral. É saborosa e semelhante ao cajá.

 

Sem dúvida, a mandioca e seus produtos identificam sofisticados sistemas alimentares indígenas; comida da terra, simbolização indígena.

Ela dissolveu a alva carimã e preparou ao fogo o mingau para nutrir o filho. Quando o sol dourou a crista dos montes, partiu para a mata, levando ao colo a criança adormecida.

Carimã: uma conhecida preparação de mandioca. Caric – correr, mani – mandioca: mandioca escorrida.

 

Frutas, mel, caças, peixes, boa água, milho, mandioca fazem os cenários experimentados pela boca e assim incorporados em estética-experimental, por onde Iracema transita e dialoga com os muitos sinais da mata, de uma natureza exuberante, quase paraíso.

Contudo a mimosa hostilis é o lugar do grande segredo, até hoje experimentado em diferentes rituais de marca indígena e afro-brasileira.

Há ainda uma cuidadosa seleção de todos os produtos serem nativos, da terra, apontando para um trabalho etnográfico formador de cenários realistas para viver o sentido alucinógeno da jurema.

Pois, no texto interno de Iracema, pode-se dizer que: sonhar também é preciso.

 

 

 

Raul Lody

 

 

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