À Mesa com Manuel Querino – Uma experiência gastronômica e patrimonial

As diferentes formas de interpretar e recuperar referências ancestrais e históricas de fontes documentais, que trazem bases significativas sobre os nossos patrimônios alimentares, dão-se a partir de um conjunto de ações multidisciplinares, que podem ser apoiadas teoricamente pela antropologia da alimentação.

A antropologia da alimentação, com seus recursos teóricos e conceituais, pode trazer importantes indicadores para interpretar e localizar referências, processos étnicos, momentos sociais e econômicas, num ambiente plural e complexo com foco sobre comida ligada a cultura.

Assim, amplos estudos e maneiras de contextualizar referências sobre ingredientes, modos de fazer, tecnologia artesanal, estética da comida, utensílios de servir, organização de cardápios; rituais sociais da comensalidade em torno da comida e da bebida; podem revelar territórios, sistemas alimentares, segmentos etnoculturais, comunidades e indivíduos.

No caso do patrimônio alimentar brasileiro, destaque para alguns pesquisadores que se ativeram às questões como receitas, ingredientes, maneiras de servir, que trazem relatos, quase sempre, com tendências etnográficas; e, assim, reuniram memórias pessoais e memórias coletivas em relatos registrados através de diferentes documentos que salvaguardam acervos que fazem parte da construção de identidades.

São clássicos, nos estudos sobre comidas e bebidas, as observações gerais e abrangentes sobre os ingredientes e algumas das suas características nutricionais nas ocorrências das comidas. Contudo, um descritivo com maior detalhamento, como, por exemplo, as fichas técnicas, os recursos necessários para a realização da receita, aparecem como um caso especial, e isso aponta para a necessidade de uma interpretação e de uma análise dessas receitas, que são verdadeiros documentos de salvaguarda do nosso patrimônio alimentar.

Certamente, refiro-me aos clássicos da literatura voltada para as muitas expressões dos nossos patrimônios alimentares de brasileiros, e que geralmente localizam as comidas em narrativas diversas. Quando se observa a recuperação e a possibilidade de realização das receitas, vê-se a necessidade de estudos específicos da gastronomia.

E para um melhor entendimento e a possibilidade de realizar as comidas, recorre-se as fichas técnicas que apontam com a maior fidelidade possível desde a escolha dos ingredientes, suas quantidades, até os modos de fazer, os utensílios culinários, e demais questões que garantam a realização da receita. E isto tudo deve respeitar a sua identidade e integridade para possibilitar uma verdadeira experiência gastronômica de salvaguarda.

Também, o entendimento sobre comida e cultura no âmbito da salvaguarda não está apenas no ato de realizar a receita, mas num amplo conjunto de estudos que buscam localizar, documentar e contextualizar, essas comidas com respeito cada na sua essencialidade simbólica.

Trago como estudo de caso a obra clássica, e tão celebrada, de Manuel Raimundo Querino, A Arte Culinária na Bahia, um acervo significativo sobre comidas e bebidas do Recôncavo baiano, que tem como fundamento a própria história de vida de Manuel Querino nos seus ambientes de experiência alimentar em Santo Amaro da Purificação e na cidade do São Salvador. São relatos e registros que localizam as ofertas de ingredientes, as receitas; e assim um retrato gastronômico. Ainda, tem-se a possibilidade de observar o que se comia na Bahia no final do século XIX e no início do século XX.

 

A arte culinária da Bahia, de Manuel Querino
A arte culinária na Bahia, de Manuel Querino

 

Traz, além das receitas, aspectos do consumo, dos hábitos alimentares, das preparações; dos hábitos; que são verdadeiros construtores de paladares, e assim possibilita um entendimento sensível que nos possibilita uma verdadeira experiência de sentido patrimonial.

Querino aponta neste seu livro dois grandes conjuntos de comidas e de bebidas, todas da Bahia, certamente todas experimentadas pelo autor, para desta maneira criar os seus focos de interpretação. O primeiro conjunto trata das comidas e das bebidas africanas; e o segundo conjunto localiza as comidas e as bebidas baianas.

Evidentemente, no seu entendimento sobre a cozinha baiana, neste caso o Recôncavo, o autor também oferece com essas comidas os seus processos culturais diversos, que estão relacionados às bases afro-diaspóricas, às bases ibéricas, destacadamente a portuguesa; e outras referências com os povos tradicionais; e mesmo das muitas relações com os imigrantes de diferentes partes do mundo.

Os ambientes escolhidos nos relatos de Querino têm, preferencialmente, aspectos valorativos de patrimônios alimentares referenciados na sua própria história, e nas múltiplas relações dos processos afro-diaspóricos nas construções das diversas de identidades baianas, profundamente fundadas nas matrizes africanas.

Hoje, o estudo dessas receitas a partir do aprofundamento das suas fichas técnicas chegam para recuperar e realizar todas as receitas de comidas e de bebidas trazidas por Manuel Querino, acompanhado do desejo dessa experiência gastronômica.

Este trabalho multidisciplinar buscou traduzir e, principalmente, respeitar as características e as indicações do próprio autor. Os processos de recuperação das receitas foram muito além das fichas técnicas, embora essas fichas sejam fundamentais para possibilitar, com a maior fidelidade possível, a realização das receitas.

Foram realizados muitos laboratórios culinários, onde se observou, analisou; comeu-se e se bebeu todos esses processos experimentais. Ainda, com respeito à utilização dos utensílios artesanais, os mais próximos possíveis aos ambientes históricos de Manuel Querino na Bahia.

Assim, durante o ano de 2022 e o ano de 2023, com a participação de profissionais do Senac Pelourinho, Museu da Gastronomia Baiana, das áreas de cozinha e gastronomia, sob coordenação científica de Raul Lody, um projeto experimental foi instalado. A partir dos critérios fundados na antropologia da alimentação, e um projeto documental com fotografias que acompanham todas as etapas da construção das comidas e das bebidas; iniciou-se um conjunto de ações organizadas para a recuperação, e principalmente para possibilitar a realização, das diferentes receitas, cumprindo todo o rigor da tecnologia culinária artesanal.

Essa experiência precisa ser partilhada com os diferentes profissionais da área da gastronomia, de modo que possamos viver à boca todas essas realizações que recuperam a receita não apenas enquanto um descritivo de ingredientes, mas principalmente enquanto uma representação simbólica em âmbito afro-diaspórico.

Assim, foi o idealizado um almoço com a possibilidade de viver essa experiência gastronômica memorial e identitária da Bahia a partir dos registros, e estudos iniciais realizados por Manuel Querino. Tudo se deu num ambiente de valorização da cozinha patrimonial, que envolve simbolismo, estética, e tantos outros elementos ligados a cultura para podermos vivenciar as receitas escolhidas para o então o almoço – À Mesa com Manuel Querino.

Então, quando se iniciou a escolha dos pratos que comporiam este almoço, buscou-se as representações dos ingredientes e das técnicas culinárias diversas, para possibilitar diferentes experiências sensoriais durante o preparo da receita, e especialmente as muitas experiências simbólicas em contextos da história da cultura da Bahia, a partir das suas mais representativas matrizes africanas.

O primeiro prato escolhido traz uma receita marcante na trajetória afro-diaspórica de africanos da África ocidental, e que evidencia uma forte presença de povos e civilizações africanas islamizadas. E assim é o arroz de Hauçá.

Sem dúvida, o arroz de Hauçá é uma reinterpretação das receitas do cuscuz Magrebe da África islâmica, norte do continente africano e banhada pelo mar Mediterrâneo.

O Magrebe marcou e civilizou, por séculos, a península ibérica. E as culturas afro-islamizadas chegam, ao Brasil, com os muitos contingentes de homens e mulheres africanos em condição escrava; mas sem perderem suas expressões ideologias que os identificam no mundo muçulmano.

Como acontece com o cuscuz Magrebe, que é realizado a partir de diferentes granulações e de tipos do trigo, do trigo sarraceno, da sêmola; ainda, há receitas feitas à base de milheto, e em alguns casos especiais feitos à base de arroz.

Contudo, o que identifica e marca o cuscuz Magrebe é o seu formato arredondado, enformado, centralizando no prato, e sobre esta massa cozida a vapor com diferentes técnicas do artesanato culinário no cuscuzeiro, é colocado diferentes molhos, e outros acréscimos que darão identidade as tipologias dos variados “cuscuzes”, dentro desse hábito milenar dos povos berbere.

 

Arroz-de-Haussá
arroz de Hauçá – Foto de Jorge Sabino

 

Desta feita o arroz de Hauçá é preparado com arroz muito cozido e enformado, centralizado no prato, e é preparado um molho à base de charque e ou carne seca, refogada no azeite de dendê, e em alguns casos pode ocorrer o acréscimo de pequenos camarões secos e defumados neste molho.

Destacar que o arroz é insosso, ou seja, sem sal, e apenas cozido na água, já o molho é condimentado, espesso, temperado com pimentas frescas. Assim, sobre o arroz, como acontece com a organização do cuscuz Magrebe, o molho complementa o prato, e está pronto para o consumo.

O arroz de Hauçá é consumido pelas populações afro-islâmicas na Bahia, como se consome o cuscuz Magrebe à base de trigo, e seus diferentes molhos de legumes, frutas secas, carne de carneiro ou de caprino, entre outras possibilidades na sua concepção tradicional africana.

O consumo deveria ocorrer com os comensais utilizando um prato coletivo com o cuscuz comento, como diz a tradição de mão ou com as mãos, utilizando, preferencialmente, a mão direita e os dedos polegar indicador e médio para acessar comida e assim levá-la à boca.

Também neste cardápio, além do arroz de Hauçá, temos o ecuru, um tipo de farofa feita a partir da massa tradicional para se fazer o abará, sem os condimentos e o azeite de dendê. Esta massa de feijão-fradinho é também embalada numa folha de bananeira, e segue os mesmos procedimentos artesanais para se fazer o abará. Assim, após o seu cozimento em processo de banho-maria, a massa é desembalada e é esfarelada, como uma farofa, e, na sequência, acrescenta-se mel de abelhas, azeite de dendê e outros temperos. O ecuru é uma comida que está presente nas cozinhas rituais dos terreiros de candomblé, e integra o cardápio religioso para alimentar os orixás.

Outra comida que integra o cardápio Á mesa como Manoel Querino é o eran patere, que é um prato feito à base de carne verde, fresca, de gado vacum, que passa pelo processo de salga; sendo depois frita no azeite de dendê. Este é no outro prato que está presente nas cozinhas rituais dos terreiros de candomblé, sendo uma comida de uso ritual religioso para os orixás.

Também fez parte do cardápio o efó, uma comida que está no nosso cardápio, integra-se há uma categoria que podemos chamar de comidas verdes ou comidas de folhas. O efó pode ser preparado a partir de folhas popularmente conhecidas como: língua de vaca, mostarda, e a taioba. A folha cozida é temperada com pimenta, cebola, sal, camarões defumados e azeite de dendê. Algumas receitas servem o efó com peixe, geralmente sem temperos, que é preparado à parte e depois incluído no prato.

 

O Ekó Ogi da Nigéria e o Acaçá branco da Bahia - Brasil Bom de Boca
Ekó Ogi da Nigéria e o Acaçá branco da Bahia – Foto Jorge Sabino

 

Ainda, o acaçá, nesse caso o acaçá branco, uma interpretação afro-diaspórica do ekó ogi africano, é preparado à base de milho branco demolhado, pilado, e, na sequência, as porções são embaladas em folhas de bananeira, e depois cozidas em banho-maria. Este tipo de acaçá é insosso, sem temperos, sendo assim um acompanhamento tradicional para comidas bem condimentadas como, por exemplo, o vatapá, o caruru de quiabos, entre outras.

Nesse caso especial do nosso almoço, optamos em realizar uma interpretação também tradicional da cozinha patrimonial afro-baiana que é o conhecido acaçá de leite, feito com a mesma massa do acaçá insosso. Contudo, acrescido de leite de gado vacum ou leite de coco, adoçado, e ainda temperado com cravo e canela. No caso específico deste almoço o acaçá de leite foi incluído no cardápio como uma sobremesa totalmente integrada ao conceito patrimonial orientador desta experiência gastronômica, complementam este almoço que marca uma importante e pioneira experiência patrimonial da mesa baiana.

 

Á mesa com Manuel Querino ocorreu no dia 28 de setembro de 2023, às 12 horas, na sala Mestre Pastinha e Dona Romélia no Museu da Gastronomia Baiana, Senac Bahia.

 

 

 

Raul Lody

BrBdeB

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