Arroz de Haussá, uma comida afro-mulçumana

Os registros sobre a receita de arroz de Haussá e, em especial, sobre a estética desse prato, acontecem com Manuel Querino no início do século XX, na Bahia.

Esta comida é uma celebração e uma interpretação da tradição afro-islâmica, que foi adaptada e integrada aos muitos grupos culturais das diferentes regiões do continente africano que foram para a cidade do São Salvador, Bahia.

A receita e o processo culinário de maior sentido histórico sobre o arroz de Haussá está, sem dúvida, na obra de Querino. Obra fundamental que nasce de um olhar valorativo sobre as matrizes africanas na Bahia, e daí de forma extensiva para o Brasil, país considerado como o de maior afrodescendência no mundo.

 

 

Arroz-de-Haussá
Foto de Jorge Sabino

 

 

A comida, para Querino, revela-se como um texto existencial na sua vida.  Enquanto homem afrodescendente, ele buscava as suas bases históricas e sociais nas suas matrizes etnoculturais. Ele buscou também na estética elementos para um maior entendimento do que é ser africano na Bahia.

Querino mostra no seu livro “A arte culinária da Bahia” (1926) um acervo de receitas para se compreender a comida tradicional, popular e sagrada, na cidade do São Salvador.  O olhar etnográfico clássico de Querino possibilita conhecer ingredientes, processos culinários artesanais; e ainda mostra algumas localizações de povos africanos na Bahia, no caso os afro-islâmicos, conhecidos como os Malê.

As receitas de Querino, certamente receitas experimentais, têm um valor especial da história africana na Bahia e na formação da cozinha brasileira nas suas bases étnicas. Querino nasce em 1851, momento em que o Brasil ainda era um país escravocrata, e assim ele traz nos seus relatos as informações que eram possíveis, dentro da sua condição e realidade de homem negro.

A receita do arroz de Haussá na obra de Querino é emblemática, e com esta comida ele recupera também um imaginário sobre a população muçulmana da Bahia e, em especial, na cidade do São Salvador.

Embora a receita localize o grupo etnocultutral afro-islâmico Haussá, o termo mais comum usado, à época, era chamar qualquer africano muçulmano de Malê. Uma designação geral dada pelos Iorubá ou Nagô para os africanos de diferentes etnias e culturas, inclusive aos próprios Iorubá que aderiram ao Alcorão e se tornaram seguidores da “Charia”.

Os Haussás foram uma importante civilização situada, no século XIX, na Nigéria e no Níger, e que esse estendeu, por motivos comerciais, até o norte da África, em uma África muçulmana tradicional, região conhecida por Magreb.

A receita do arroz de Haussá tem destaque no conjunto das demais receitas recolhidas e estudadas por Querino. Esta receita dialoga em tecnologia e em estética com o cuscuz procedente do norte da África e, em especial, com as receitas dos povos Berberes.

Tão importante quanto a receita do arroz de Haussá é a sua morfologia, pois ela recupera a estética do cuscuz tradicional africano feito de sêmola – trigo duro –, de farinha de arroz, ou de milhete; que organizado a partir destas bases de cereais, é acompanhado por molhos feitos com ingredientes que indicam os diferentes tipos de cuscuz para o cotidiano e para a festa.

O arroz, um cereal exótico, da Ásia, por longo processo de inclusão passa a ser um dos ingredientes mais consumidos na Nigéria, país que abriga muitos Haussás.  Na Nigéria, vê-se uma ampla culinária com arroz nas receitas tradicionais como o jollof, ofada, tuwo shinkafa – bolas de arroz –; sinasir – panquecas de arroz.

E desse processo de intercâmbios entre povos e culturas na base da tradição afro-islâmica nasce o arroz de Haussá.

O arroz de Haussá deve ser muito cozido na água e sal, e também acrescido de pó de arroz, para depois ser enformado ou arrumado de forma circular, como acontece com o cuscuz. Então se acrescenta um molho feito de pimenta, camarões defumados moídos, carne de charque frita no azeite de dendê, o que resulta num molho grosso. Este molho é colocado sobre o arroz, no centro, como se faz também com os molhos usados para o cuscuz que são preparados com verduras, frutas secas, carne de carneiro; e várias especiarias como: canela, açafrão, entre outras.

Como acontece com o cuscuz africano, o arroz de Haussá é comido com as mãos.   Pequenas porções de arroz se amoldam em bolas que são acrescidas do molho, e aí levadas à boca.  As porções para cada comensal está indicada na quantidade que está na sua frente, no prato coletivo, e assim se segue este ritual de alimentação. É tradição comer com a mão direita, mão destinada para a alimentação, conforme as regras muçulmanas.

Na Bahia, essa comida está incluída na categoria de “comidas de azeite”, ou seja, comidas feitas com azeite de dendê. No Recôncavo da Bahia, estas comidas são tradicionais nas festas domésticas, como feriados, celebrações religiosas e familiares. Assim, as muitas comidas de azeite são preparadas e servidas de maneira coletiva, como acontece com o vatapá, o caruru, e o efó, entre tantas outras.

A receita tradicional do arroz de Haussá foi transformada com a inclusão de leite de coco na preparação do arroz, e também no molho feito com camarões defumados inteiros; ainda, a carne de charque passou a aparecer como uma espécie de guarnição do prato.

Com certeza, as receitas são textos que estão sempre sendo adaptados em que alguns ingredientes são modificados, pois o processo culinário é dinâmico, e a chegada do leite de coco à receita tradicional do arroz de Haussá mostra um estilo da cozinha afro-baiana, onde se mistura o coco com o azeite de dendê.

Também, o cuscuz de sêmola africano foi nacionalizado com o uso da farinha de milho, e pode ser acrescido de leite de coco. Há ainda o cuscuz de massa de mandioca e coco, uma interpretação muito mais regional.

Sem dúvida, a comida é um texto visual que traz estética, odor, temperatura; e memórias pessoais e sociais que funcionam como um entendimento sobre o gosto, e uma forma de encontro de ingredientes com as pessoas que recorrem a sua identidade, a sua família, e ao seu povo.

 

Raul Lody

BrBdeB

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