Beber é um ato social. Beber é um convite à comensalidade, aos encontros, às trocas de informações que apoiam a construção e o fortalecimento de elos afetivos.
Beber para celebrar, destacar, os momentos do cotidiano; para expressar religiosidade; entre tantos outros motivos que estão integrados às relações sociais.
Com certeza, o tipo de bebida, a quantidade e as maneias de servir indicam como a bebida deverá ser consumida. Porque as bebidas, para serem verdadeiramente saboreadas, têm seus rituais, que começa pelo tipo de copo ou outro utensílio para o serviço à mesa ou nos balcões dos bares e dos mercados que são próprios para cada tipo de bebida.
É comum nos bares populares antes da “talagada” de cachaça, oferecer uma quantidade ao chão, para o santo; e dessa forma estabelecer um elo ancestral, uma comunicação que se crer ser possível através das bebidas, isto dentro do imaginário do sagrado. Um imaginário que é amplo, subjetivo e pessoal.
Cada tipo de bebida tem um sentido diferente para cada comunidade, segmento étnico, sociedade. E assim, há diferentes maneiras para se viver a comensalidade por meio das bebidas fermentadas e destiladas.
As bebidas são consagradas por suas diferentes propriedades, e são importantes por serem argumentos para criarem encontros e diálogos entre os homens, entre o homem e o sagrado; e é também como uma espécie de afirmação, de marco do mundo masculino.
Nos cenários sociais contemporâneos, com certeza, as bebidas são temas de sedução nas propagandas, que atribuem valores sexuais ou de fortalecimento de alguns ideais machistas.
Contudo, as tradições dos muitos e diversos rituais que fazem da bebida um meio para se experimentar identidade trazem outros motivos, e valorizam o ato de beber nos muitos e diversos contextos e significados das culturas para homens e mulheres.
Ainda, o ato de beber integra festas coletivas que promovem sociabilidades. Assim as bebidas tornam-se motivos de encontros, e agregam muitas vezes comidas especiais que se harmonizam em sabores e ingredientes; são receitas idealmente consagradas para acompanhar cada tipo de bebida.
Quero trazer a cachaça, esta bebida telúrica, nacional, e de crescente valorização de terroir, nos seus variados estilos, para mostrar como a “branquinha” ou “água de que passarinho não bebe” está integrada aos hábitos do brasileiro.
Sem dúvida, a nossa tão brasileira cachaça vem assumindo um novo sentido neste cenário fashion da gastronomia, e isto é fortalecido no conceito de terroir, pois há uma valorização de um produto regional
Quanto aos sabores da “purinha”, existem as misturas, as batidas com frutas, e/ou outros ingredientes, tais como cravo, canela em pau, ervas, raízes; e tudo mais que possa liberar sabores e perfumes tropicais. Tudo a partir deste néctar que nasce da cana de açúcar.
E para viver tantas opções de sabores, de preferências, as cachaças da terra, cachaças da Bahia trazem as histórias da plantation de cana de açúcar do Recôncavo. E são muitas as cachaças do Recôncavo.
A minha primeira experiência com a purinha do Recôncavo foi com a “Cigana Boa”; e a partir daí fui experimentando todas as outras, tais como: Serenata, Umburana do Alto, Sedutora, Abaíra, Cabaceira do Rio Prata, Engenho Bahia, Rio de Engenho.
Bem, como a Bahia é para mim um lugar de intimidade, vou trazer alguns dos meus bons hábitos de beber quando estou na cidade do São Salvador; e entre eles, o hábito de viver nas manhãs dos sábados no andar térreo do Mercado Modelo as cachaças da terra.
Tudo acontece no território dos bares e botecos deste tradicional mercado. E neste espaço, de maneira coletiva, vivem-se os mais profundos e estimados rituais de comensalidade. São verdadeiras festas, encontros, tudo bem regado com as novidades que chegam no som das conversas em voz alta, muito alta, numa mistura concreta dos acontecimentos que vêm do mar, da ilha, dos terreiros de candomblé, dos namoros; risadas; abraços; reencontros; a plena alegria de estar celebrando com bebida e comida.
Celebrar com cachaça, com batidas de frutas, com cerveja; com lambreta no molho de lambão, com peixe frito e salada de rodelas de tomate e de cebola; ou mesmo, bem próximo, nos tabuleiros, pode-se acompanhar com acarajé ou abará, com molho de pimenta.
_ Eu prefiro com o molho “Nagô”, vatapá, caruru, e tudo mais que a boca quiser neste território dos encontros de sábado. Eu tenho as minhas preferências de bebidas, e gosto muitíssimo da mistura de cachaça com gengibre, com tamarindo, com coco; mas eu gosto mesmo é da festa, da possibilidade de rever amigos, de viver novos encontros; pois o lugar é um território livre para os sabores da cana, das pimentas, do dendê, dos produtos que chegam do mar.
É muito bom ir se aproximado do lugar e começar a ouvir, “um gengibre”, “uma lambreta”, “uma moela com molho”, uma “gelada”; e assim vou me misturando aos sons e ao desejo do meu gengibre bem gelado, quero um; em seguida, outro, e estou calibrado, pronto para conversar; e sentir o mar tão perto; saber das festas dos terreiros e de outras que irão acontecer.
Bem, para continuar só um bom vatapá, ou mesmo uma moqueca de peixe, e sigo outras rotas, rotas que conheço, que dão continuidade a minha busca de sabores nesta mágica São Salvador.
Raul Lody