Peixe que te quero peixe

Os sistemas religiosos são determinantes nas orientações dos comportamentos, da seleção estética do vestir, das atitudes corporais, da sexualidade, e das escolhas das comidas, porque todos esses indicadores carregam muitos significados simbólicos que fortalecem um entendimento daquilo que é sagrado na constituição da identidade da pessoa.

Essa identidade reflete os ideais religiosos dos muitos processos de consumir, por diferentes rituais, a alimentação do cotidiano e da alimentação especial que ocorre no período das festas. São interações que buscam nos sistemas alimentares aquilo que é permitido comer a partir do que é preconizado pelo Deus, pelo Santo, pela divindade.

Está na comida, e aí também situada a bebida, os princípios e as maneiras de representar o mundo, a natureza e as muitas relações do que se come e do que se bebe com as regras e os princípios do sagrado.

As regras do que pode, do que é aconselhável, do que é tabu no âmbito da alimentação, trazem questões não apenas rituais e religiosas, mas também questões que implicam na sanidade e na qualidade dos ingredientes, dos processos culinários, do oferecimento das comidas; e no entendimento amplo e plural da alimentação.

Comer o que é permitido, segundo os princípios religiosos, de diferentes religiões, implica em muitas e diferentes interpretações que fazem estabelecer um relacionamento religioso entre a pessoa e as representações do Divino; e do que revela em cada comida o entendimento de sagrado. Assim, a religiosidade está no consumo, na escolha, nas experiências da alimentação, que são experiências nutricionais; contudo, profundamente encharcadas de fé.

Por exemplo, se a divindade é representada por um tipo de peixe, este peixe é tabu para a alimentação do grupo que segue as regras religiosas de um determinado modelo sagrado, porque comer este peixe é o mesmo que comer a divindade. Também, pode-se entender que o consumo da carne e do sangue de determinado animal que representa a divindade vai possibilitar um encontro e uma interação do sagrado com a pessoa que comeu o animal, e seguiu as prescrições e os rituais deste oferecimento de uma alimentação propiciatória; pois comer o sagrado é trazer o sagrado para o corpo, e assim ser também parte da divindade. Estes casos localizam os muitos princípios orientadores e determinantes das possibilidades dos ingredientes, e dos processos construtores das comidas que vinculam o que é divino na alimentação.

Como um caso exemplar, e muito próximo da maioria que está no mundo cristão, é o seguimento das regras do que comer na Semana Santa. Porque o entendimento do que comer acompanha princípios, que são reveladores da relação dos ingredientes com os rituais que culminam com o corpo sacrificado e do sangue derramado de Cristo, oferecimento do corpo como um oferecimento sacrificial.

Neste ambiente, onde a carne e o sangue se apresentam como expressões extremas de um sacrifício humano, a carne e o sangue, de variados animais, são relativizados e apontados com o tabu para o consumo humano. Porque durante estes dias em que são revividos os imaginários e as liturgias do sacrifício, recuperam-se as memórias fundamentadas em diferentes entendimentos do que é carne e do que é espírito.

Assim, para os cristãos, há orientações gerais sobre o jejum, sobre cardápios simples e leves; e especialmente para os cardápios sem o consumo da carne bovina, caprina, ovina ou suína; de diferentes aves, de caças variadas, entre outras. Porque há um entendimento análogo entre o corpo sacrificado, com a carne e o sangue dos alimentos.

Certamente existem outras considerações, também gerais, para o tabu de se comer carne no período da Quaresma, atribui-se o consumo de carne há um consumo de uma certa luxúria alimentar, e que não representa para os cristãos este momento tão reflexivo e simbólico do sacrifício.

Assim, aconselha-se a comer peixes e outros frutos do mar, por considerá-los mais leves, e esteticamente e simbolicamente distanciados da carne ou do sangue. Contudo, nestes contextos de frutos do mar, as opções são inúmeras e as possibilidades gastronômicas apresentam-se em cardápios diversos, e com preparos não menos diversos, e isso possibilita experiências à mesa tão luxuriantes como se estivéssemos a comer os assados de carne, e sangue, com os seus molhos e complementos diversos.

No caso brasileiro, há uma escolha sacralizada de comer bacalhau, de diferentes maneiras e com diferentes acompanhamentos, geralmente com a harmonização de vinho tinto. O bacalhau como prato principal é um ideal de consumo para muitas pessoas no período da Sexta-feira Santa. E, ainda, porque este peixe salgado marca uma relação de nobreza para quem o consume. É o imaginário do que se entende por bem comer.

Sem dúvida, são muitas as opções de ingredientes que chegam do mar e que chegam dos rios, e os seus diversos preparos mostram tendências regionais, com receitas tradicionais a base de leite de coco, de azeite de dendê, e de azeite de oliva. Além de: camarões, ostras, mexilhões, lagostas; peixes diversos, e outras delícias do mar. Tudo isso é consumido num ambiente de poder econômico para estas celebrações, e trago um importante indicador que mostra que o consumo médio do brasileiro é de um quilo de peixe ao ano. Assim, tudo isso mostra que muitos brasileiros só comem peixe na Semana Santa, quase um tipo de obrigação religiosa.

Todas as escolhas alimentares seguem os princípios do sagrado, que determina os lugares sociais dos que seguem os modelos cristãos, e que buscam na Quaresma e na Semana Santa a prática do jejum total, ou parcial, combinado com alimentação frugal. As comidas são preciosos indicadores das culturas, dos territórios, dos segmentos étnicos, dos princípios da moral religiosa, conforme cada tradição, cada escolha pelo que se entende do que é Divino e do que é sagrado.

 

 

Raul Lody

BrBdeB

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