Exu é o dono da Feira, da Feira de São Joaquim da cidade do São Salvador

Há, sem dúvida, algo de ancestral e mágico nas feiras e nos mercados populares e tradicionais, pois eles mostram as marcas de vida e de uso de populações, e traz suas histórias e expressões de identidade, e isso tudo reúne diferentes patrimônios.

É por isso que as feiras e os mercados são únicos, têm características peculiares, são lugares destinados para além do comércio. São territórios de descobertas, de encontros, e de reencontros com os desejos; seja para experimentar um doce, uma fruta, um punhado de farinha, um pedaço de rapadura; sentir o cheiro de uma folha; poder se emocionar.

Estes territórios também se distinguem pelas suas especialidades, pelas suas possibilidades de carregar memórias, de ativar formas peculiares de consumir; e assim experimentar uma das funções mais determinantes para se viver uma feira ou um mercado, que é a possibilidade de adquirir um tipo de produto que só é encontrado neste lugar.

Feira de São Joaquim - Brasil Bom de Boca
Foto de Jorge Sabino

A feira e o mercado são territórios que revelam diferentes atividades comerciais, diferentes ofícios, diferentes descobertas; mas principalmente diferentes encontros, porque estar nestes territórios é estar em contato vivo e dinâmico com o mundo.

A feira e o mercado são territórios para se contactar com um mundo ali representado, com um mundo-síntese que se apresenta nas ofertas de produtos e no fortalecimento dos laços sociais, na ampliação das redes de sociabilidades; e assim viver magicamente esse território.

São representações de tudo que se pode e deseja consumir, seja nas opções de alimentos; de objetos artesanais de diferentes materiais e utilidades; de muitos símbolos de significados rituais religiosos; e de tudo mais que possa atender às necessidades que nascem das buscas; e certamente dos encontros que somente a feira poderá oferecer, porque cada feira é especial e única.

Certamente existem muitos tipos, tendências, especialidades, que caracterizam as feiras, aqui quero mostrar e localizar uma feira profundamente identificada com as matrizes africanas, e que busca atender diferentes populações, especialmente as populações que querem adquirir produtos que representam e que atendam um consumo de referência e de expressão ritual e religiosa, como, por exemplo, o povo do candomblé baiano.

Refiro-me a Feira de São Joaquim, uma verdadeira instituição da Bahia, um patrimônio da cidade de São Salvador. Esta Feira é um retrato ampliado da Bahia, uma reunião de acervos que se manifestam nos inúmeros produtos que afirmam as identidades das localidades do Recôncavo e, em especial, nos alimentos.

São muitos os destaques da Feira: as pimentas; as vísceras, de boi, de porco; os feijões; o azeite de dendê; os camarões secos e defumados; as especiarias; as farinhas de mandioca em diferentes estilos, sabores, e atestações de terroir; os animais vivos para atender ao consumo sagrado dos terreiros; o feijão-fradinho para fazer a massa do acarajé; as folhas de bananeiras para os acaçás, os abarás, as pamonhas de carimã, entre tantos outros produtos.

 

Feira de São Joaquim - Brasil Bom de Boca
Foto de Jorge Sabino

 

Também, há o setor de comidas, onde se pode experimentar o cuscuz de milho, o caruru de quiabos, o mocotó; os assados; o bom feijão, feijão “gordo” com carnes salgadas, embutidos e carne verde, fresca; o “malassado”; a roupa velha, uma deliciosa comida feita da carne que retemperada com dendê e camarões defumados; lambreta com molho lambão para acompanhar uma cerveja gelada, ou uma batida de gengibre; ainda, peixes na forma de ensopado; moqueca; frito, escabeche; e tantas outras possibilidades de se comer a Bahia.

Outro destaque especial vai para os produtos de matriz africana, muitos procedentes do continente africano como: obi, orobô, ecodidé, lelecum, bejerecum; ataré, tecidos, manteiga de ori, sabão da costa, palha da costa; e muitas contas em diferentes materiais.

Ainda, destaque para os muitos artesões-ferreiros que fazem os objetos que têm sentido sagrado, ritual-religioso, e na Feira encontramos os ferros de assentamentos, representando Exu, Ogum, Oxóssi, Ossãe, Oxumaré; e, em latão e cobre, abebês, couraças, capacetes, adês; joias corporais como os copos – punhos –; os braceletes; os ides – pulseiras. Nestes cenários de religiosidade, muitos santos em gesso policromados, todos misturados com muitas folhas para todos os usos do corpo e da alma. Louças de barro para as liturgias dos terreiros, como as quartinhas e os alguidares de barro; gamelas de madeira; e muito acaçá pronto para o consumo sagrado.

Ir a feira é muito mais do que apenas consumir. É interagir com as histórias pessoais e coletivas, e com os desejos. Pode-se dizer que ir a feira é experimentar todos os seus sentidos e referências simbólicas. É poder dialogar com um comércio que é, para muitos, essencialmente sagrado.

 

Feira de São Joaquim - Brasil Bom de Boca
Foto de Jorge Sabino

 

O território da feira é um lugar sagrado nas tradições de matriz africana, pois a feira é o lugar de Exu, orixá da comunicação, da interação entre a ancestralidade, os orixás e os homens. Exu está na feira, está presente em tudo que ela pode representar de produtos; ele está também na construção das relações interpessoais.

Exu é uma ação sagrada na feira, e traz tudo que é preciso para a feira poder funcionar, e o consumo ocorrer para atender todos os desejos. Assim, como acontece nas culturas das tradições Ioruba, no continente africano, cada feira e mercado tem o seu Exu, que é lembrado e cultuado em rituais religiosos.

Assim, a Feira de São Joaquim é um lugar de compras, de trocas, de conversas, de encontros; de viver relações sagradas que trazem identidade, pertencimento, alteridade.

Laroiê Exu!

Peço permissão para entrar na Feira de São Joaquim.

 

 

 

Raul Lody

BrBdeB

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