No amplo e diverso imaginário do brasileiro ainda permanecem alguns conceitos sobre a África, e tanto mais quando se idealiza a comida, os ingredientes e as técnicas culinárias.
Inicialmente, para entender a comida africana é preciso primeiro entender que a África é um continente. Embora para muitos, num olhar idealizado, permanece a ideia de que a África é um lindo prado com elefantes, leões, macacos, jacarés; e populações que passam o dia todo dançando ao som de tambores. Bem, incrivelmente “muita gente” ainda pensa nesta direção, diria romantizada, xenófoba, e repleta de muitos preconceitos.
Isso tudo faz fortalecer o conceito de que a comida africana no Brasil, especialmente na Bahia, é feita apenas com dendê e pimenta; e com estas fontes passa-se a reduzir a matriz africana.
E com este processo faz-se uma história deficitária e racista; e, diz-se até que existiu uma tal “cozinha e/ou comida de senzala”. E já estou falando do caso brasileiro.
E o que seria isso neste cenário idealizado? Dentro desta fantasia, parece que haveriam mulheres com lindos e enormes turbantes, panos da costa, muitos colares; saias estampadas; e sempre, ao som dos tambores, cozinhado em grandes panelas de barro as delicias que vinham do outro lado do Atlântico. _Eu digo que NÃO; pois foi a crueldade marcou as relações sociais do processo escravagista. Oferecia-se um mínimo de comida. Um tipo de comida muito mole, e uma vez por dia. Era um tipo de pirão de farinha de mandioca ou de farinha de milho, água e sal. Era comida para “encher o bucho”.
Farinha e água; farinha e as frutas, se possível; farinha e carne de charque, farinha com peixe seco, algo muito especial. Farinha com tudo que se pudesse comer; uma mostra do pleno sentimento de onívoro.
Entender que a África é um continente que reúne centenas de grupos culturais, de civilizações, e que ela tem muitos idiomas e muitos sistemas alimentares, é reconhecer um universo que é tão próximo, mas tão desconhecido para nós brasileiros, e possibilita um sentimento plural e diverso sobre tudo o que comemos hoje.
Por tudo isso, agora quero mostrar um importante segmento que está localizado na área mediterrânea da África, uma civilização que abrange um território chamado de “grande Magreb”, que compreende: Egito, Líbia, Tunísia, Argélia e Marrocos. Esta fantástica civilização é marcada pela chegada do Islã na África, e a partir daí a sua expansão pela a península Ibérica, Espanha e Portugal.
Os povos islâmicos chegam na península Ibérica a partir do século VIII. E com isso, a nossa colonização oficial portuguesa já estava fortemente marcada por um Magreb já islamizado quando chegou aqui. Foram estes povos do Norte do continente africano que civilizaram e co-formaram a própria península Ibérica.
Os povos do Magreb têm uma tradicional e variada doçaria a base de trigo, frutas cítricas e mel; pratos com carnes de aves, de caprinos e de ovinos, menos a de porco; legumes. E estes povos já incluíam diferentes especiarias que chegavam do Oriente e iam para o Ocidente; e entre estas especiarias estavam a canela e o açúcar, que marcam muitas comidas do cotidiano e das festas.
Inicialmente, um dos pratos Magreb mais populares e cotidianos na Bahia é o cuscuz, que é um nome e uma técnica de se fazer comida. No nosso caso, temos como base a farinha de milho, de massa de mandioca, e até já temos de farinha de arroz, todos estes ingredientes substituem a sêmola, farinha de trigo duro tradicionalmente usada na receita Magreb.
Voltando ao açúcar e a canela, mistura que traz a marca culinária da experiência Magreb, está no nosso “bolinho de estudante”, sempre untado com muita canela e açúcar; está também na banana frita em azeite de dendê. E não podemos esquecer das rabanadas ou fatias de parida, feitas a partir do reaproveitamento de fatias de pão, que são enriquecidas com leite e ovos, e são fritas, e também inundadas de canela e açúcar.
Assim, esta mistura identitária do Mediterrâneo, de uma África do Norte islamizada, traz com o açúcar e a canela uma marca decisiva para a nossa cozinha, para os nossos hábitos alimentares. É a cultura na construção do nosso paladar.
Raul Lody
(publicado originalmente no 28 de abril de 2016 no jornal A TARDE)