Comidas de terroir. Os 90 anos do Manifesto Regionalista

Todos os diversos movimentos planetários, que marcam este início do século XXI, buscam por sistemas alimentares que valorizam ingredientes e tecnologias culinárias, que mostram diversidade de produtos, de saberes tradicionais, e de comidas que chegam para alimentar, nutrir; e assim possam representar lugares, e simbolizar pessoas, sociedades, etnias, civilizações.

 

Foto Jorge Sabino

 

Estes movimentos que unem meio ambiente e cultura representam uma ampliação crescente sobre biodiversidade, soberania alimentar, direito à alimentação e contra a fome no mundo, entre demais temas que fazem da comida um eixo marcante das relações sociais contemporânea; pois a comida é um dos temas que dominam as mais diversas leituras e entendimentos na sociedade e na economia.

Ao mesmo tempo em que a globalização padroniza e iguala o consumo mundial, este mesmo mundo busca experimentar a pluralidade étnica, a biodiversidade e a agricultura familiar, como importantes espaços de alteridade, de pertencimento e de humanidade.

Assim, de confort food ao food truck, de fast food ao slow food, entre tantos outros, vive-se sistemas alimentares com as suas tradições e dinâmicas peculiares.

Esses temas tão atuais e planetários, e que fazem parte da vida de povos e culturas, levam ao encontro da comida como a mais plena emoção de pertença, de alteridade.

Entretanto, já em 1926, vivia-se no Recife uma busca pelos acervos regionais nas suas bases ecológica, econômica e cultural; e isto orienta a criação do Manifesto Regionalista, que encontra na alimentação uma das suas mais importantes bases conceituais

O Manifesto Regionalista, organizado por Gilberto Freyre, é um auto olhar pela valorização do que é regional, e revela a singularidade do Nordeste. Sem xenofobia, tradição e memória tornam-se conceitos dominantes e marcam um entendimento de terroir.

Muitas questões que fazem parte do conceito deste Manifesto são atuais e de interesse social, cultural e ideológico, perante os diferentes significados de soberania alimentar e patrimônio imaterial.

O Manifesto Regionalista mostra como é necessário preservar a água de coco, o doce de frutas, o alfenim, os bolos; e como estes alimentos, os seus rituais de comensalidade, e as suas técnicas culinárias nas cozinhas, fazem parte dos seus contextos sociais.

Inicialmente, os conceitos do Manifesto são estéticos e têm profundas relações com o meio ambiente, com os ofícios, com as questões sociais das cidades; e por isso eles têm a vocação de se ampliarem através do direito cultural.

Sem dúvida, esse Manifesto é memorial e patrimonial, e valoriza o que é telúrico no Nordeste. Na interpretação de Gilberto, um Nordeste multicultural, pois a formação do homem português já era globalizada no século XVI, o que traz para esta região os encontros entre o Oriente e o Ocidente. E, com certeza, a cana de açúcar possibilita ampliar, à época, este entendimento de mundo. No Manifesto, há também destaque para as muitas relações com o continente africano, e como estas relações foram fundamentais para a formação do Nordeste, e isso é preciso preservar. E assim traz Gilberto no Manifesto Regionalista:

“Enquanto isso, foi se mantendo a tradição, vinda de Portugal, de muito quitute mourisco, ou africano: o alfenim, a alféloa, o cuscuz, por exemplo. Foram eles se conservando nos tabuleiros ao lado dos brasileirismos: as cocadas – talvez adaptação de doce indiano, as castanhas de caju confeitadas, as rapaduras, os doces secos de caju, o bolo de goma, o mungunzá, a pamonha servida em palha de milho, a tapioca seca, e molhada, vendida em folha de bananeira, a farinha de castanha em cartucho, (…)”.

Sem dúvida, a comida, a história dos ingredientes e os rituais da alimentação, mostram que o Manifesto quer interpretar pela comida os temas da região, o que, aliás, é uma das características de Gilberto Freyre, que preferencialmente escolhe a comida e a alimentação como métodos de interpretação social. E isto se torna declarado na sua obra.

E como diz Gilberto, ainda no Manifesto:

“Na verdade é que não só de espírito vive o homem: vive também do pão, inclusive do pão de ló, do pão-doce, do bolo que ainda é pão”.

 

 

Raul Lody.

Recife, 28 de abril de 2016.

BrBdeB

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