O sacrifício dos animais.
Sem dúvida, as religiões são sacrificiais, e os seus sacrifícios vão muito além do oferecimento, em imolação, de animais de diferentes tipos, de acordo com as liturgias.
Entretanto, uma flor, uma vela, uma bebida, um cereal; o pagamento de um carnê, numa nova versão do óbulo, podem significar um ato sacrificial conforme as regras, os conceitos e as orientações das muitas tradições religiosas que estabelecem as complexas relações entre o homem e a divindade.
O sacrifício pode ser um ato individual ou coletivo, e a doação que se quer oferecer em sacrifício segue uma ética sagrada. Uma forma ritual de se estabelecer comunicação, aliança, compromisso, que são legitimados por cada tipo de oferta e de cerimônia.
Quero nesse conjunto tão diverso, daquilo que se pode entender por ato sacrificial, destacar a forma de matança de variados animais com diferentes intenções, funções e sentidos para se alcançar o sagrado. Porque os animais sacrificados seguem para os altares e para as mesas no cumprimento de sistemas alimentares onde as carnes são oferecidas em culto e fé religiosa. Animais que fazem uma aliança entre o sagrado e o homem.
No mundo globalizado os animais consumidos com intenções sagradas, sacrificiais, atingem a cifra de bilhões. E o ato sacrificial vai muito além de uma pessoa que usa um facão para degolar uma galinha, por exemplo, as próprias industrias, conforme os interesses econômicos, assumem posturas morais/religiosas para atingir novos mercados.
Há um mercado consumidor que exige grandes abates, e milhares de animais são sacrificados para o cumprimento de prescrições religiosas, de modo que nas tradições que são contempladas pelas regras do sacrifício os seus adeptos possam, sem incorrer em pecado, preparar as suas comidas com estas carnes já abençoadas.
Nessa mesma categoria estão os milhões de perus que são sacrificados todos os anos para fazer parte do banquete do Dia de Ação de Graças e, em especial, nos USA. Estes perus são mortos, diria sacrificados, para atender uma intenção, um uso religioso no oferecimento de carne, e a sua partilha à mesa em celebrações orientadas por um protestantismo histórico.
São verdadeiras matanças dessas aves que são oferecidas a Deus, e as receitas clássicas dessas carnes são socializadas durante as refeições coletivas. O mesmo se dá na ceia natalina no mundo Cristão com os muitos tipos de assados: porco, cabrito, ovelha, entre outros animais que também são sacrificados em ampla matança, na intenção de celebrar o nascimento do Menino Deus.
Assim, milhões de animais são mortos, intencionalmente mortos, para preservar a celebração e a fé. Porque o que vai à boca, a comida, é na maioria dos casos orientadas por tradições religiosas enquanto verdadeiras receitas que devem ser legitimadas numa base moral e sagrada.
Alguns animais são necessários para o sacrifício, e em cada abate há uma intenção religiosa, seja para celebrar dogmas de igrejas, de sinagogas, de mesquitas, de terreiros de candomblé, entre outras tradições religiosas. E o princípio que orienta o sacrifício é a alimentação humana.
Por exemplo, para manter a carne dentro da qualidade kosher para os judeus, e a qualidade halal para os islâmicos ou muçulmanos, o abate deve ocorrer com uma única ação, um único golpe da faca sobre a jugular do animal, onde se despeja todo o sangue, pois o sangue não é próprio para o consumo humano.
O abate de base ritual para os islâmicos ou muçulmanos se dá com aves, bovinos, caprinos, ovinos, e que ainda quando vivos devem estar voltados para a direção de Meca, e então o abate será feito por um muçulmano praticante. A faca com que se faz a degola do animal deve estar muito afiada para garantir a morte instantânea do animal, sem sofrimento; e assim antes do sacrifício, pede-se uma autorização a Deus, em árabe, como uma maneira de mostrar obediência e agradecimento pela comida, e, desse modo, atestar que o sacrifício não é um ato de crueldade ou de sadismo.
Integrado aos conceitos de alimentação, de comida, de comensalidade, de aliança com o sagrado, os sacrifícios de animais têm funcionalidade, cumprem obrigações; preservam cardápios, datas festivas, iniciações religiosas, ritos de passagem; e mantêm unidade e identidade das tradições e dos sistemas alimentares.
Aliás, independente do motivo sagrado, sabe-se que o Brasil é um dos maiores mercados de carne do mundo.
Nesses contextos sociais, econômicos e culturais, deve-se olhar para a ampla ação do abate de animais para atender sistemas alimentares dos mercados nacional e internacional, visto que a maioria da população do planeta é onívoro, e as carnes têm destaque na formação de cardápios e nos hábitos alimentares.
No caso brasileiro, verifica-se na estatística de 2015 que houve o abate de 39 milhões de suínos, 5 bilhões de frangos, 30 milhões de bois; e, ainda, segundo o IBGE, em 2015, o Brasil mata um boi, um suíno, e cento e oitenta frangos por segundo.
Certamente a carne que chega do abate cerimonial, com intenções sacrificais, é uma carne autorizada que segue os ritos que buscam tocar no sagrado. Por exemplo, os frangos sacrificados pela indústria da carne no Brasil, para o mercado muçulmano, seguem as regras do Alcorão, e assim a sua carne que chega do abate ritual estará boa para o consumo.
Nas religiões de matriz africana e, em destaque, o candomblé, os sacrifícios integram as liturgias, e são realizados com rituais específicos relacionados à vida sagrada do terreiro. O sentimento de sagrado orienta cada cerimônia através de canto, música instrumental, dança, e o uso de variados objetos de função litúrgica para o sacrifício de cada animal.
Essas religiões milenares de matriz africana têm sofisticados processos sociais e rituais aonde os animais não são maltratados, e são imolados de maneira funcional, com faca, e nele se separa o sangue para os deuses e as carnes para os homens.
Todavia, embora as matanças de animais com prescrições religiosas sejam em maior número feitas pela indústria das carnes no Brasil, há uma verdadeira ação de intolerância religiosa com as matanças artesanais realizadas nos terreiros de candomblé.
Essa crescente intolerância religiosa quer criminalizar os sacrifícios de animais dos muitos terreiros de candomblé, que querem exercer seus direitos de liberdade e opção religiosa da mesma forma que são asseguradas aos judeus, aos muçulmanos, aos cristãos, e as seitas pentecostais, entre outras.
Raul Lody