Nos cenários nacionais e internacionais vive-se uma busca por alimentos saudáveis procedentes da agricultura familiar, da pesca; e de outras formas de criatórios como aves, suínos, bovinos e caprinos; e que se unem a um crescente desejo de valorização dos hábitos alimentares a partir dos ingredientes locais.
Nessa busca pela preservação e pela continuidade dos diferentes processos produtivos, e das receitas que trazem representações culinárias e atestam a diversidade e as identidades culturais, vigora um sentimento dominante de terroir.
No caso brasileiro, a mandioca tem destaque dentro da nossa biodiversidade. Com os sabores desta raiz americana, construiu-se diferentes sistemas alimentares que há milhares de anos fazem parte da vida dos povos nativos.
A mandioca tem um sentido nacional, e a partir das muitas farinhas que existem é possível identificar lugares e/ou regiões do Brasil. E além do consumo das suas folhas, a maniva, na saborosa maniçoba; também são utilizados outros produtos derivados da mandioca como: tucupi, goma, puba, massa de mandioca, farinha de tapioca entre tantos.
Cada ingrediente, conforme o seu uso e interpretação simbólica, determina um estilo de se relacionar com o homem, pois comer é uma auto-representação cultural.
Essas grandes bases alimentares que chegam da mandioca estão presentes na composição de cardápios do cotidiano, e nos hábitos alimentares de milhares de brasileiros.
O brasileiro se identifica como um comedor e apreciador de farinha seca – farinha-de-guerra, farinha-da-terra, farinha-de-mesa, farinha-de-pau, farinha-d’água –; e de farinhas com marcas autorais na sua forma de ser torrada artesanalmente, momento em que se revela o estilo autoral dentro da tecnologia tradicional da “casa de farinha”. Algumas farinhas são temperadas no próprio momento da sua produção, na casa de farinha, com pimentas, açafrão-da-terra, entre outros ingredientes.
As farinhas estão integradas às refeições e, em especial, para complementação de pratos como o clássico “feijão com arroz”; além de muitas outras receitas que só estarão completas se acrescidas com farinha de mandioca. Destaque para o preparo de pirões e farofas, exemplos de realizações telúricas e verdadeiramente nativas.
Com a “goma”, outro produto de destaque da mandioca, faz-se grandes beijus com mais de um metro de diâmetro, e que são secos ao sol sobre as grandes ocas, e que fazem parte do sistema alimentar de muitos povos indígenas, e são acompanhados com peixe seco, caça, e preparos à base de diferentes pimentas nativas.
Outra importante tradição culinária que surge a partir da goma é a tapioca, seja nos preparos domésticos ou, em especial, como comida de rua, em um tradicional e consagrado fast food da mandioca.
As vendedoras de tapioca, “tapioqueiras”, oferecem delícias que usam a alvíssima goma que, depois de assada, é recheada com queijo coalho, coco ralado; doces de frutas, chocolate, banana, ou apenas a tão tradicional manteiga.
Já a “massa” de mandioca quando misturada com coco seco, que deve ser ralado na hora, é a base para se fazer o “cuscuz de massa”, um cuscuz que pode ser doce ou salgado e que marca as mesas do Nordeste.
As invenções gastronômicas que surgem a partir da mandioca determinam uma verdadeira marca do nosso hábito alimentar, em dimensão nacional, e assim é possível manter as referências desta nossa memória de paladar.
Porém, está no pirão um tema quase épico da obra de Gilberto Freyre. O pirão integra diferentes cardápios que ampliam as possibilidades de se comer à brasileira.
A farinha está na memória, e presente à mesa, quando se tem um cardápio com cozido, seja com legumes, carnes frescas e salgadas, embutidos; ou que tragam outras variadas opções de sabores especiais para que seus caldos quando unidos à farinha de mandioca faça nascer o tão apreciado “pirão do cozido”.
Há também o pirão que nasce a partir do caldo em que é cozido diferentes tipos de peixes, com o acréscimo de cebola, tomate, “cheiro-verde” (coentro e cebolinho); e ainda, legumes, raízes; frutas, como banana-da-terra; ovos, pimentas frescas, para formar o “caldo” que é misturado com a farinha de mandioca para se fazer o celebrado “pirão da peixada”.
Preparar o pirão é um momento especial e delicado em que a farinha deve cair suavemente sobre o caldo de forma habilidosa. Deve-se derramar a farinha e mexer sem parar o pirão até que ele chegue à consistência desejada; para uns ele deve ser mais mole; para outros ele deve ser mais consistente.
Outro exemplo é o pirão de leite, uma boa oportunidade de sentir e apreciar este preparo que pode ser combinando as carnes de gado vacum, de gado caprino, de suíno, preparadas com sal e sol, é a “carne de sol”. Está é uma técnica tradicional usada para conservar a carne, e com isso criar receitas regionais. Este pirão de leite se integra a estes tipos de carnes. Muitas destas carnes são amanhecidas no leite para amaciar, segundo o costume do Sertão.
Além de valorizar os pirões nas suas inúmeras formas de preparo, Gilberto Freyre louva o pirão como uma realização da cozinha brasileira, uma comida patrimonial brasileira. E assim ele declara seu quase amor ao pirão: “ Divino pirão! ”.
“ Nunca no Brasil se pintou um quadro nem se escreveu um poema nem se plasmou uma estátua nem se compôs uma sinfonia que igualasse em sugestões de beleza a um prato de pirão. ” In Arte de comer, Jornal Diário de Pernambuco, anos 1920.
Sem dúvida, a comida vai muito além do ato mecânico de se nutrir, de encher o “bucho”. A comida possibilita o ato humano e sensível de simbolizar. A comida possibilita um sentimento estético, palatal, e de prazer à boca. A comida ainda possibilita um desejo de adoração, de reconhecimento, e de quase sacralidade.
Raul Lody, 24 de agosto de 2015.