Quiabos e as preferências de Gilberto Freyre

Receitas familiares de Apipucos

Muitas vezes os cadernos de receitas são textos especialmente preparados para os membros da família. Eles são textos pessoais, íntimos e autorais.  D. Magdalena, mulher de Gilberto, preservou assim os seus acervos de receitas, que tinham também comentários sobre processos culinários e avaliações dos comensais, sempre nos próprios cadernos.

As comidas selecionadas, que particularizam os cadernos, traziam histórias, sentimentos, preferências culinárias da família Freyre; e ainda mostravam cardápios temáticos que eram organizados para as festas e para o cotidiano. Estes cadernos dão um entendimento mais profundo do que era a casa de Apipucos.

Certamente os cadernos de receitas colecionados por D. Magdalena já mostravam o seu estilo e tendência de entender a comida regional, sempre presente nos seus cardápios.

Como exemplo, trago uma receita do Caruru:

Ingredientes

2 garrafas de leite de coco; 1 quilo de camarão descascado; 20 quiabos; gengibre; pimenta do reino; louro; 2 tomates picadinhos; 1 cebola picadinha; 1 colher de sopa de vinagre; azeite; alho amassado; pedaços de bacalhau moídos; camarões cozidos e moídos.

 

Foto Jorge Sabino

 

Modo de fazer

Misture parte do leite de coco com um pouco de água, mais gengibre, a pimenta, o louro, a cebola, os tomates, o vinagre, o azeite e o alho. Leve essa mistura ao fogo, rapidamente e coe. À parte, cozinhe os quiabos cortados em rodelas. Escorra a baba e misture ao molho coado. Adicione o bacalhau e o camarão e leve, novamente, ao fogo, acrescentando um pouco de azeite de dendê, de vinagre e meia xícara de farinha de mandioca. Mexa até engrossar um pouco. (Lody, Raul (org.). À mesa com Gilberto Freyre. Pag. 71).

As nossas conversas sobre as comidas da casa de Apipucos, minha com D. Madalena, tiveram como tema inicial o arroz doce, um preparo com diferentes características, e do nosso gosto pessoal.

Na verdade, trocamos algumas receitas experimentadas nas nossas casas: arroz doce com leite de coco; arroz doce com raspas de limão; arroz doce com gemas de ovos; entre tantas outras. Sempre com muita canela para cobrir as travessas.

Essa é uma comida que simboliza fartura, como acontece com a canjica de milho nas festas de São João. Em particular, a comida feita de milho também louva a Santo Antônio, santo da devoção de Gilberto.  Trago comigo boas lembranças das conversas que tive com D. Magdalena. A comida e tudo que ela capaz de marcar nos rituais sociais e nas celebrações sempre tiveram destaque na casa de Apipucos.  

Lá, estar à mesa era um momento de comensalidade, de sociabilidades e, em especial, quando eram servidos os cardápios que promoviam estas relações, como, por exemplo, a feijoada, a peixada, o cozido. Tudo para ser comido de forma lenta e reflexiva.

A isso se alia o sentido da comida na obra de Gilberto Freyre enquanto um verdadeiro método para se interpretar o Nordeste, especialmente Pernambuco.

“Mas o bom pernambucano é que não se deixará facilmente se desenraizar da mais fina tradição culinária do Brasil. É um paladar, o seu, enobrecido por cento e cinquenta, duzentos e até quatrocentos anos de feijão de coco e de sabongo, de doce de caju e de vinho de jenipapo”. (Crônicas do Cotidiano. A vida cultural de Pernambuco nos artigos de Gilberto Freyre. Org. Carolina Leão. Diário de Pernambuco. 2009:65).

E dessa maneira, Gilberto valoriza um estilo especial de colonização, que ele chamava de “luso-tropical”, onde os ingredientes do Ocidente e do Oriente dão um sentido especial a formação da nossa mesa desde a colonização, o que possibilita viver uma mesa mundializada.

“Não é só o arroz doce: todos os pratos tradicionais do Nordeste estão sob ameaça de desaparecer (…). O próprio coco verde é aqui considerado tão vergonhoso como a gameleira, que os estetas municipais vêm substituindo pelo fícus benjamin, quando a arborização que as nossas ruas, parques e jardins pedem é a das boas árvores matriarcais da terra ou aqui já internamente aclimatadas: pau d’arco, mangueira, jambeiro, palmeira, gameleira, jaqueira, jacarandá. ” (Freyre, Gilberto. Manifesto regionalista. 1976:57)

O seu método de interpretação do homem brasileiro representado através da alimentação é ecológico, é patrimonial, e é contemporâneo no que se refere à valorização dos ingredientes regionais.

Este mergulho sobre as receitas, os cadernos de receitas, as preferências de Gilberto, e as interpretações feitas por D. Magdalena estão no livro “À Mesa com Gilberto Freyre”, Ed. Senac Nacional, 2004. Obra que organizei a partir dos cadernos de receitas, e dos depoimentos de D. Magdalena e da família de Gilberto.

Este livro, que trata das comidas e das maneiras de comer no cotidiano e no tempo das festas, torna-se quase um código de comportamento, de estilo, e de um modo particular de se viver cada alimento.  

Também traz as preferências por determinados tipos de doces de frutas; tipos de carne; de comidas servidas especialmente para os convidados; e assim se identifica a verdadeira assinatura autoral e particular de D. Magdalena, a dona dos cadernos.

Certamente essas experiências culinárias na casa de Apipucos assumem também valores de observação etnográfica sobre as receitas, seus processos culinários, e seus rituais à mesa.

 

Raul Lody

Recife, 21 de setembro de 2015.

BrBdeB

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