A vida social no século 19 por Gilberto Freyre

 

A vida social no Brasil nos meados do século XIX é tese de Gilberto Freyre que em 2022 celebra 100 anos!

 

“(…) para saber como vivia o povo, que trajes usava, que experiência tinha.”

Além da roupa, embora a roupa possa traduzir tantas referências como a comida, os hábitos alimentares, as escolhas dos cardápios do cotidiano e das festas, sagrada ou não, entre tantas outras, são muitas as questões que a tese oferece para as descobertas deste Brasil entre as paredes das casas. Assim, a tese nasce no sentimento ampliado daquilo que pode traduzir uma história da vida intima, segundo Goucourt.

A celebração dos 100 anos da tese de Gilberto Freyre, apresentada na Columbia University, na qual ele expõe uma base e um conceito fiéis à construção da sua obra que traz o homem situado no trópico, para que se possa entendê-lo na sua diversidade e na sua identidade. E, forma um novo olhar e um novo sentimento de nacionalidade a partir das relações sociais nos ambientes da multiculturalidade brasileira, com ênfase no Nordeste.
Gilberto assume um caminho auto-etnográfico, e se torna também protagonista dos seus relatos sobre a intimidade das casas patriarcais.

É um auto olhar que recupera a sua ancestralidade patriarcal, tanto nos depoimentos de familiares quanto num novo contexto profundamente transgressor que marca os anos 1920.
A busca por um entendimento de Nação nos cenários mundiais, e também a busca pelas matrizes da pluralidade etnocultural, pelos movimentos artísticos do surrealismo, do dadaísmo, do fauvismo, e das novas estéticas, dos novos contextos, causam alargamentos reais das paredes de pedra e cal, e das paredes simbólicas dos limites e das possibilidades de tocar no outro, no diferente.
As descobertas de Gilberto dentro da sua história de vida e das suas relações na casa, trazem descritivos que cruamente revelam os hábitos higiênicos, a sexualidade, o gênero e, em especial, as classes sociais, quase “castas”. Em destaque, as relações sociais em bases econômicas para a afirmação de identidades e de papéis sociais tanto na casa patriarcal quanto nos contextos ampliados da região.

E assim fala Gilberto:
“Alfredo de Carvalho, por exemplo – para poderem comer, na velhice de fidalgos arruinados, o queijo-do-Reino e a passa a que se haviam habituados nos dias de esplendor, terem precisado de vender móveis e livros raros, pratas e joias de família”.

Essa intimidade que Gilberto revela mostra um retrato direto, cru, dos muitos significados de viver na casa, e interagir com as suas diversas ritualidades cotidianas, e na sua ruptura afirmativa, também ritual, pelas festas e pelo sagrado. E as funções de gênero na casa, e os lugares hierarquizados de homens e de mulheres, a temporalidade dos papeis sociais que determinavam as funcionalidades de crianças e de velhos nas casas de pedra, de madeira, de ferro, de cal; e nas casas simbólicas.
As revelações sobre a intimidade, sobre os verdadeiros sentidos de viver em família, nas ritualidades da casa, hábitos que vão além do teatro social da igreja, da festa, das visitas, da comensalidade à mesa.

 

A vida social no Brasil nos meados do século XIX - Gilberto Freyre
A vida social no Brasil nos meados do século XIX – Gilberto Freyre

 

E diz Gilberto:
“(…) o quase secreto de viver nas alcovas, das relações entre iaiás e as mucambas, entre pais e filhos (…)”.

A moral; o céu sempre numa Igreja dominadora com os seus santos; os ancestrais representados nos seus retratos e que moram nos oratórios, lugares de trazer culto ancestral e as histórias familiares.
A tese que celebra 100 anos está num processo de análise da new history, da história social e cultural, que vai além de fatos épicos, heroicos, onde a pessoa é o centro da história nas suas múltiplas relações humanas e sociais.

Neste contexto, é importante citar um artigo de Gilberto publicado no Diário de Pernambuco – “Pirão: Glória do Brasil” – que afirma como é necessário um monumento ao pirão. E mostra seu forte sentimento telúrico e moderno, profundamente moderno.
As experiências internacionais de Gilberto ampliaram o seu olhar de brasileiro para o Brasil e, em especial, para o Nordeste. É preciso estar no Brasil, e fora do Brasil, para entendê-lo.
A percepção histórica e a antropológica de Gilberto Freyre mostra as novas formas de ver os rituais secretos das casas, e assim organizar um modelo de nacional.

E isso também diz Braudel:
“(…) o estudo do passado humano fazia-se necessário aplicar critérios diferentes dos convencionais”.

Esta construção de métodos e de conceitos da cultura, que atestam as singularidades e os temas da vida cotidiana, tem destaque no artigo de Gilberto – Vida Social no Nordeste Brasileiro – publicado em 1925, por ocasião da celebração do 1º centenário do jornal Diário de Pernambuco.
As pesquisas etnográficas, e auto-etnográficas, de Gilberto Freyre reúnem amplos acervos sociais e culturais, e que estão organizadas nas suas obras fundamentais “Casa-Grande & Senzala”; “Sobrados e Mucambos”; e, “Ordem e Progresso”.
Ainda na tese, Gilberto traz a imagem como uma forma sensível de linguagem para interpretar e mostrar os temas da cultura material.

“(…) para interprestar todo o inventário litográfico que lhe tem sido possível reunir sobre pessoas, sobre casas, sobre móveis, sobre paisagens (…).”

O entendimento de paisagem está nos entornos ecológicos que estão representados e nas paisagens sociais, nas concepções urbanas, nas arquiteturas das casas e as suas interações com as pessoas.
Desse modo, nasce um processo generoso para entender o outro, um processo que transita pela diversidade, por aquilo que é diferente, que busca pela alteridade.
É preciso desafiar o olhar vitoriano vigente, e orientador, que representar as relações sociais e familiares, é preciso transgredir estes limites. Gilberto é um inovador, um revelador. Ele busca pelo outro para mostrar, através do seu olhar antropológico, um modelo de formação regional que está polvilhada de açúcar e de vícios na sexualidade. Há um catolicismo nas casas quase íntimo com os santos, quase promiscuo.

 

A vida social no Brasil nos meados do século XIX - Gilberto Freyre
Foto de Jorge Sabino

 

Todos estes temas fundamentais para o conhecimento da família patriarcal são ampliados em “Casa-Grande & Senzala”, num roteiro para se começar a entender o brasileiro.
Ainda, há as questões referentes a mundialização, as relações comerciais, as maneiras de importar os hábitos para as casas, as roupas, as comidas, os comportamentos sociais; e para a dinâmica das relações entre os gêneros; era a atualização do viver o moderno nas famílias patriarcais.

“(…) na formação de hábitos à época a importação da Inglaterra, da França, de Hamburgo, de artigos elegantes de uso pessoal, de móveis e espelhos para as salas aristocráticas ou burguesas, de alimentos, de vinhos e cervejas e licores considerados finos e capazes de dar prestígio às mesas de casas de família (…)”.

Assim são ampliadas as relações pelo consumo de bens para a casa e para os costumes pessoais, vivem-se os confrontos com as bases etnoculturais formadoras do brasileiro.

“(…) homem situado, que podendo ser o situado no trópico, como é o brasileiro e dos povos afins do brasileiro podem ser caracterizadas ou condicionadas por outras ecologias, a do homem de origem hispânica ou ibérica – a quem juntariam influências não europeias e de culturas extra europeias (…)”.

Há um outro olhar impressionista de Gilberto Freyre sobre todos estes processos sociais, que definem e singularizam o brasileiro nos contextos econômicos selecionados, que tem como lugar ideal, e cenário, a casa para manifestar a vida e a cultura.
Os argumentos da cultura material na tese de Gilberto são fundamentais por mostrarem acervos, usos, e funções nas casas.

“(…) brasileirismos sertanejos (…) bilhas, os potes, as jarras, as cuias, os punhais, os cocos de beber água (…) os queijos, os vinhos, os cachimbos (…)”

Sem dúvida, a cultura material, que é afirmada através da comida em Gilberto, mostra as suas escolhas, e traz uma tradução, um argumento, que revela a identidade do brasileiro.

“Os trabalhadores dos grandes engenhos ou das fazendas patriarcais do Brasil dos meados do século XIX eram de ordinário bem alimentados e recebiam comidas dos senhores como se fossem – depõe um observador estrangeiro – como se fosse uma grande família de crianças. Tinham três refeições por dia e um pouco aguardente pela manhã”.

A primeira refeição era constituída de farinha ou pirão, com frutas e aguardente. Ao meio-dia, faziam uma refeição muito substancial:
“De carne ou peixe. À noite feijão-preto, arroz e verduras.”

E há muitas outras leituras de Gilberto sobre as comidas e as suas muitas representações alimentares, e simbólicas, para um melhor entendimento das casas e dos seus habitantes no contexto da família patriarcal.

“(…) os brasileiros, quando patriarcais, precisam não somente da sala de visita e de muitos quartos, mas de grande sala de jantar. Isto tanto nos sobrados das cidades como nas casas-grandes do interior, as famílias eram numerosas e gostavam de receber amigos para o jantar. Era nas mesas, nos grandes pratos cheios de gorda carne de porco com feijão-preto, de pirão, (…), de canjica, de pães doce, de doces, de bolos e de sobremesas frias, que os brasileiros mostravam sua melhor hospitalidade patriarcal (…) os patriarcas enchiam as mesas especialmente de doces e cremes de frutas nativas, como laranjas, maracujás, goiabas e mangas”.

A comida, nas suas muitas formas de comunicação e de produção, representa também o método preferencial de Gilberto na sua tese, de base humanista e antropológica, nos cenários de um Brasil, no caso do Nordeste, de Pernambuco, do Recife. E as relações familiares de Gilberto são orientadoras e formadoras da sua busca pelo nacional brasileiro.

“Nos grandes engenhos de açúcar de Pernambuco espalhados entre o Recife e o Rio Uma (…) pequenas indústrias domésticas desenvolviam-se paralelamente às atividades agrícolas. Entre essas pequenas indústrias a fabricação de vinhos de jenipapo, a preparação de charques ou carne-seca, de queijo de coalho e de várias espécies de doces e de bolos”.

Esse brasileiro, na sua diversidade e na sua unidade social e econômica, é mostrado com e sem roupa na sua mais perfeita identidade tropical Nordestina.
Agora em 2022, a tese de Gilberto Freyre, que completa um século, apresenta-se tão atual quanto antes, e traz aspectos diversos sobre um entendimento complexo sobre a vida e a cultura; e tem também Gilberto como protagonista desta história regional, brasileiramente pernambucana.

 

 

RAUL LODY

BrBdeB

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