Mastigando com Mário de Andrade

Este texto é uma interpretação do artigo “Tacacá com tucupi” de Mário de Andrade, de 28 de maio de 1939, do jornal O Estado de São Paulo. Este texto também é uma celebração do pensamento modernista, que em 2022 comemora um século.

Certamente, “Tacacá com tucupi” é o único texto exclusivo de Mário de Andrade sobre a comida brasileira. Nele Mário traz o seu olhar e sentimento modernista, que é profundamente valorizador da identidade, da singularidade e da etnicidade, que formam os nossos sabores regionais e autorais.
Dessa maneira, há um sentimento dominante de Mário nas suas formas de buscar brasilidades, dentro do que ele considera como “arte-fazer”.
Arte-fazer é um evidente reconhecimento dos saberes tradicionais que se manifestam nas muitas tecnologias artesanais, que abrange desde a feitura de um berimbau até o processo para se obter o leite coco, por exemplo. Também, neste princípio conceitual de arte-fazer, há uma fruição ampla e diversa das matrizes etnoculturais que fazem parte da nossa criação popular.

No artigo “Tucupi com tacacá” as comidas, e as suas características gastronômicas, são mostradas a partir dos pratos selecionadas por Mário, e que têm uma forte relação com as suas descobertas e as suas preferências de comensal.
Tudo se reúne numa busca de Mário por um Brasil brasileiro, com identidades regionais marcadas por diferentes processos históricos, sociais, ecológicos e culturais. Busca que se revela nas suas preferências gastronômicas, que estão principalmente nos seus relatos cheios de alumbramentos com os sabores da Amazônia.
Há em Mário um desejo de mapear as nossas comidas, de procurar um entendimento para a diversidade alimentar do brasileiro, de dar um reconhecimento patrimonial e de expressão de arte para nossa culinária. É preciso segundo Mário: “Conhecer o Brasil pela sua cultura culinária”.

Nos movimentos intelectuais do Brasil, nos anos 1920, fervem os movimentos artísticos no mundo ocidental, vivem-se os “loucos anos 1920”. Sem dúvida, além de Paris, quem assina a maioria destes movimentos é a “Paulicéia”, que também fala de modernidade; e, ainda, Pernambuco que está conectado com a Europa e com o Brasil regional.
Se a comida é a orientadora das descobertas modernista, destaco uma ampla produção sobre comida e sociedade, e sobre o regionalismo, mostrado por Gilberto Freyre. É a valorização da comida enquanto um processo para se conhecer a cultura e conhecer o homem regional. E assim, nos anos 1920, Gilberto Freyre já publicava nos seus artigos no jornal Diário de Pernambuco, indicações para um mapa das comidas e, com certeza, da valorização do terroir. Ele já louvava o pirão de farinha de mandioca, que considerava digno de um monumento.

Ainda, em 1926, no “Manifesto Regionalista”, coordenado por Gilberto Freyre, há uma evidente sacralização das comidas regionais enquanto um método de ampliar os olhares para um Nordeste, que busca identidade e modernidade. E todo este processo, de trazer a comida como um meio de traduzir o homem situado no trópico, é fortalecido com a publicação, em 1939, do livro Açúcar de Gilberto Freyre.
Este cenário ampliado sobre uma valorização integrada das comidas regionais, também é fortalecido com o entendimento de tradição e de modernidade a partir da multiculturalidade, e da pluralidade das matrizes étnicas, todas tradutoras dos nossos sistemas alimentares.

As descobertas e a valorização presente das nossas comidas trazem, no artigo de Mário de 1939, o desejo de organizar e, em especial, criar restaurantes de comida brasileira, inclusive em Nova York e em São Paulo.
Nas proximidades do lançamento do livro Açúcar de Gilberto Freyre, em 1939, Mário sensível aos temas de comer cita e olha para o açúcar.

“(…) a reserva de caloria ajuda grandemente a dar para o nosso corpo brasileiro um fogo mais permanente (…)”.
E digo sobre o açúcar que é preciso mostrar este produto como um formador de uma verdadeira civilização com muitas formas e linguagens de manifestar o que Mário olha e a chama da “arte-fazer”.

Em “Tucupi no Tacacá”, embora Mário tenha experimentado as comidas tradicionais do Nordeste, ele mostra uma preferência pelas comidas da Amazônia.

“(…) pode-se dizer que há uma ascensão geográfica quanto ao refinamento e a delicadeza da culinária nacional. À medida que avançamos para o Norte, mais os pratos se tornam delicados (…)”.


As aventuras etnográficas traçam muitas faces do Brasil e, sem dúvida, o sentimento paulistano, e modernista, constrói elementos evidentes de um filtro na exposição dos modos pessoais, e do fascínio de Mário com as etnografias das culturas populares.
São todos componentes de um projeto estético modernista que quer, nas manifestações artísticas nacionais, construir suas bases para mostrar um Brasil brasileiro, e principalmente que busca o moderno.
Mário diz: “A rainha do café visitando as regiões Amazônicas e Nordeste”.
Isso revela assumidamente um certo olhar estrangeiro, e que traz referências e experiências paulistanas integradas ao que possamos chamar de buscas de descobertas. Creio que o que é exótico marca também este certo purismo sobre o Brasil dos povos tradicionais, idealizações do Brasil.

 

Mário de Andrade - Brasil Bom de Boca
Foto arte de Jorge Sabino

 

Mário se deslumbra na Amazônia, certamente são muitos os motivos, muitos encantamentos com a floresta, com as águas, com os peixes, com a mandioca interpretada no tucupi e na maniçoba. São muitas maneiras de comer e de beber o Basil.

“Belém me entusiasma cada vez mais. O mercado estava hoje fantástico de tão acolhedor. Só aquela sensação do mungunzá sentado no chão (…) saia a fumaça branquinha do mungunzá branco. Tenho gozado demais Belém”.

Nestes encontros com os temas da alimentação, dos regionalismos e das pluralidades, Mário recorre ao intelectual francês Blaise Cendrars, reconhecido pelo seu romance Moravagins, e que passou a sustentar que o Brasil tinha uma civilização própria, pois apresentava uma culinária completa e específica.

 

Mário, na busca para mostrar a nossa culinária multicultural brasileira, diz:

“O importante é que fundindo bases, princípios constitucionais de pratos asiáticos e condimentação africana, modificando nesse ou naquele sentido os pratos ibéricos, tínhamos chegado a uma cozinha original e inconfundível. E completa”.

 

Em “Tucupi e Tacaca”, Mário revela-se nas descobertas dos temperos e dos novos sabores e, em especial, da comida da Bahia.

“(…) o efó preparado à baiana, com muita pimenta é diluído no azeite de dendê, é tão brutalmente delirante que nem somos nós que o comemos, ele é que nos devora”.
E no Nordeste, outras experiências estéticas e gastronômicas: “(…) o sururu alagoano bem como o dulcíssimo pitú nordestino são espécimes delicadíssimas de manjar”.

Mario diz também: “Em geral a nossa culinária se dirige também pelas normas do belo”.
É o sentido da arte-fazer que também orienta suas interpretações modernistas sobre as comidas, as técnicas artesanais e as memórias, que mostram tantas comidas em tantos diferentes Brasis.

E assim, Mário se depara com a clássica feijoada.

“A feijoada, por exemplo, em que o feijão deixa de ser propriamente a base para se tornar a dissolvente das carnes fortes.”

O texto de Mário de Andrade, no seu artigo “Tucupi no tacacá”, é um evidente revelar da formação cultural dos paladares, das maneiras de se relacionar com os novos temperos e os usos de ingredientes, e tudo isso está traduzida na diversidade multicultural brasileira. Sem dúvida, este é o meu olhar e meu sentimento opinativo sobre as preferências de Mário para o ato social de comer e de comer o Brasil.

Sugere Mário de Andrade:

“Almoça-se pelo Brasil, mas janta-se na Amazônia”

 

RAUL LODY

BrBdeB

Voltar ao topo